A carreira de jogador de futebol tem mais desafios do que aqueles que vemos dentro de campo. Um deles é aprender a lidar com fato de que, em muitos casos, jovens se deparam com cifras milionárias em suas contas bancárias e sem orientação adequada acabam perdendo tudo por falta de conhecimento e cautela para administrar as finanças. Com o passar dos anos, os jogadores começaram a se preocupar mais com o tema e muitos buscam ajuda de especialistas.

Como isso, cresce a cada dia o número de consultores financeiros especializados em trabalhar com atletas. Inclusive, alguns deles são ex-jogadores que conseguiram ver neste nicho de mercado, a forma de dar início a uma nova profissão e ajudar ex-companheiros. Estudo feito pela consultoria alemã Schips Finanz, em 2011, aponta que 50% dos profissionais de futebol terminam a carreira com problemas financeiros. Um número preocupante, tendo em vista que boa parte deles recebem salários bem acima da média dos trabalhadores.

“O problema é que os jogadores ganham salários elevados e por não saber gerir ou até mesmo não ter tanto tempo para olhar para esse ponto com atenção, acabam administrando mal os recursos e depois têm de viver mais 40, 50 anos com dificuldades”, explicou Felipe Carrilho, especialista em administrar finanças dos jogadores.

Atualmente, Carrilho trabalha com 19 clientes. Seu trabalho começou em 2006, quando o ex-atacante Deivid o procurou para ajudá-lo a resolver uma pendência com a Receita Federal. Daí ele percebeu a carência no setor e passou a explorar o tema, como outros seguiram o mesmo caminho. O ex-zagueiro William, com passagens por Corinthians e Grêmio, entre outros, é um exemplo de atletas que se tornaram “gurus financeiros” de jogadores. Investimento em imóveis é o preferido pelos boleiros, embora não esteja entre os mais rentáveis. Por isso, em determinadas situações, os consultores enfrentam dificuldades para explicar aos clientes a importância de diversificar os investimentos.

Existem também algumas regras para que seus clientes não sejam explorados. Um deles é comprar bens sem que seja revelada a real identidade do comprador. “Quando a gente vai comprar um carro, não falamos que é para um atleta, pois sabemos que o ágio vai lá para cima. Com imóveis também percebemos isso”, disse Carrilho. O trabalho também acaba rendendo histórias boas e ruins. Presenciar brigas familiares se tornou algo corriqueiro para esses investidores. O jogador quer investir uma parte grande de seu salário, mas pessoas em sua volta não concordam.

A reportagem conversou com um investidor, que pediu para não ser identificado por trabalhar com atletas que recebem altas remunerações, e contou que já presenciou diversas brigas. “Já teve um episódio em que o casal se separou por causa disso. Ela achava um absurdo ele separar 50% do que ganhava para guardar e investir. E olha que ele ganhava mais de R$ 300 mil”, contou. Ele também lembra de um episódio em que precisava “maquiar” os números para apresentar à mulher de um atleta, que tinha, secretamente, um filho fora do casamento. “Eu tinha dois projetos. O original, que eu mostrava só para ele e um outro que eu apresentava para o casal, onde tinha que esconder os gastos com a outra família”, contou, aos risos. E como esperado, nenhum nome pode ser revelado. “Ele me mataria”, brincou.

Já Carrilho lembra de um jogador que decidiu gastar apenas 5% do que recebia. “Ele resolveu viver uma vida normal, sem extravagâncias. Se pensar em um jogador que ganha R$ 100 mil, R$ 120 mil, ele gastava uns R$ 5 ou 6 mil por mês. Muitas famílias vivem com uma renda dessa e têm um vida tranquila”, disse o consultor.

BEST E GARRINCHA SÃO EXEMPLOES NEGATIVOS – Existem diversos casos de jogadores que ganharam milhões e perderam tudo por falta de controle, más companhias ou desconhecimento para gerenciar as finanças. Um dos casos mais famosos é do irlandês

George Best. No Brasil, a história mais emblemática é de Garrincha.

Algo comum é o exagero com as baladas. Best, que atuou entre as décadas de 1960 e 1980 e morreu no ano passado, ganhou milhões nos tempos em que era ídolo do Manchester United, mas ainda como jogador teve uma queda vertiginosa na carreira e perambulou por clubes pequenos, para ganhar alguns trocados.

“Gastei 90% do meu dinheiro em bebida, mulheres e carro. O resto eu desperdicei”, era a frase mais emblemática do astro irlandês. Exemplo parecido é o de Garrincha. O ídolo maior do Botafogo ganhou muito dinheiro, mas morreu em condições financeiras precárias. O ex-atacante Muller, em 2011, admitiu estar morando de favor na casa do ex-companheiro de São Paulo Pavão.

CURSO DO SINDICATO TEM PROCURA BAIXA – O Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo tem demonstrado preocupação com as finanças dos jogadores. A entidade tem oferecido cursos para ajudá-los neste sentido.

Na semana passada, o sindicato lançou uma parceria na qual dará 60 bolsas de estudo de um curso com duração de seis meses e em que os atletas podem fazer diversas disciplinas além da educação financeira. Coaching profissional e pessoal e cursos para aprender melhor a se relacionar com a imprensa e se expressar melhor também serão dados. Foram 30 lançados em São Paulo e serão mais 30 lançados em Bauru.

Segundo o presidente da entidade, Rinaldo Martorelli, o problema maior é conseguir conscientizar os jogadores da importância de ter um conhecimento além dos gramados. “Nosso desafio é conseguir quebrar esse paradigma de que atleta não se interessa em aprender as coisas”, disse.

De fato, os atletas geralmente não se dedicam aos estudos enquanto são jogadores. O mais comum são casos de alguns que estudam línguas, principalmente o inglês, pensando, além da questão pessoal, também em possíveis transferências para o exterior.

Os cursos ainda não conseguem cativar atletas renomados. Durante o evento, por exemplo, os jogadores presentes atuavam em clubes como São Bernardo e Atibaia.