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Os admiradores de João Gilberto, acostumados com sua postura séria e o figurino de terno e gravata, ficarão surpresos com a nova biografia do pai da Bossa Nova. Em “João Gilberto, a Bossa”, o genial músico subverte a imagem que o grande público tem dele e se revela, nos bastidores de sua vida pessoal, um homem brincalhão, generoso com os amigos e adepto de hábitos bem menos sisudos do que aqueles que inspiravam suas feições no palco. O responsável pela exposição desse outro lado da personalidade de João Gilberto é o poeta Luiz Galvão, conterrâneo da cidade de Juazeiro, Bahia. Letrista do grupo Novos Baianos, ele conviveu com João desde os anos 1960 e compartilha agora uma visão condescendente e carinhosa do amigo. É mais que uma biografia formal, com ordem cronológica e checagem minuciosa de detalhes: é um livro de memórias repleto de casos saudosos.

É esse formato que fortalece o caráter único da obra: ao juntar relatos de outros amigos ao seu próprio, o autor propõe a construção de um quebra-cabeça “joãogilbertano”. Como explica Galvão, foi um processo que ocorreu “descortinando mistérios desse mestre que a vida presenteou a alguns de nós, no constante aprendizado que desfrutamos perto dele, brincando com ele, estudando-o, tomando esporro quando necessário”.

Lançamento
“João Gilberto,a Bossa”
Luiz Galvão
Ed. Lazuli
Preço: R$ 39

Apesar de Galvão não ter formação técnica, as reflexões musicais do livro nos ajudam a compreender melhor como João criou a Bossa Nova e a tornou o estilo brasileiro mais celebrado no exterior, uma vez que o próprio artista era bastante lacônico sobre o assunto. A grande influência vocal veio de Orlando Silva, cujo estilo ele adaptou de forma única, transformando o jeito de cantar aberto, de voz solta, em sussurro, como se estivesse falando. A batida da Bossa Nova, a forma percussiva e inovadora de tocar violão, veio de uma observação surpreendente: João criou o ritmo a partir da maneira como um velho amigo de Juazeiro, Waldomiro Custódio da Cunha, o Vadu, batucava na caixa de fósforos. E ninguém o ensinou a tocar: o talentoso autodidata aprendeu vendo Dagmar, irmão de Galvão, tocar para amigos. Segundo o biógrafo, em um mês João já tocava melhor que ele.

Para os leitores sem familiaridade com a parte musical, o grande atrativo do livro é a quantidade de casos que revelam a personalidade de João. Ele nunca havia sido apresentado dessa maneira porque valorizava sua privacidade. Era capaz de passar cinco horas em um telefonema, mas relacionava-se pessoalmente com pouquíssimas pessoas. Galvão lhe apresentou aos outros Novos Baianos, como Paulinho Boca de Cantor. “Tivemos o privilégio de conviver com o verdadeiro João, que nos recebia de pijamas e tinha um grande senso de humor”, lembra Paulinho. “Ele gostava dessa relação de amizade porque dizia que seu sonho era ter uma turma como a nossa.” O livro não economiza nas revelações sobre o consumo de maconha pelo grupo, droga que João apelidara de “Nelson”.

 

ORIGENS Foto do grupo Enamorados da Lua, na véspera da Natal de 1951, com dedicatória de João Gilberto (ao centro, no alto) (Crédito:Divulgação)

Foi o perfeccionismo de João que o levou a ser retratado com um gênio ranzinza e excêntrico, que causava problemas aos contratantes graças às suas exigências. “Ele não era um mestre só na arte, mas na vida. Era muito exigente, nada podia atrapalhar sua música”. Paulinho afirma que o mestre foi o responsável pela brasilidade de “Acabou Chorare”, álbum que fez dos Novos Baianos um sucesso. “Ele dizia que a gente até podia tocar rock, desde que mantivéssemos os pandeiros e os batuques.” Para os jovens baianos, tinha a força de um guru. “Ele era difícil, mas para entendê-lo em sua plenitude era preciso ser seu discípulo. Sua presença foi um aprendizado constante.”

Além de Paulinho, o livro traz depoimento de outro “novo baiano”, o compositor Moraes Moreira. Em entrevista dada a Galvão em 2020, o músico lembra a inspiração que o mestre lhe deu para compor um de seus maiores sucessos. “João saia com a gente de madrugada em seu Opala azul. Por volta das quatro da manhã, ele parou em frente à ladeira de uma favela. Descemos, o dia estava amanhecendo. De repente, do alto da ladeira, veio descendo uma mulata arrumada, cheia de vida, partindo para a luta, o trabalho, repleta de energia. João olhou para ela e disse: ‘olha o Brasil descendo a ladeira’. Fiquei com aquilo na cabeça e pensei: ‘isso dá um samba’. Foi daí que veio a inspiração para o verso “Lá vem o Brasil / Descendo a ladeira.” Esse divertido João Gilberto deixa ainda mais saudade.