14/10/2016 - 18:34
Autora do livro “João de Deus: um Médium no Coração do Brasil” (Fontanar, 2016), que acaba de chegar às lojas, a historiadora Maria Helena Machado fala a ISTOÉ sobre as principais revelações da obra. Confira.
De acordo com seu livro, João de Deus atingiu um status midiático antes conquistado apenas por líderes espirituais de origem oriental. Quais os principais fatores que, na sua opinião, produziram esse fenômeno?
Esta é uma das questões que o livro busca responder por meio da análise da vida do médium e das transformações pelas quais sua atuação passou ao longo das últimas décadas. João Teixeira de Farias é uma pessoa proveniente dos extratos populares do interior do país. Suas práticas e crenças são originárias de uma determinada cultura religiosa brasileira, que abarca tradições de cura pelos remédios de ervas, as garrafadas – João de Deus foi durante anos um raizeiro – as benzeduras, as rezas, o catolicismo devocional com suas orações de proteção, cura e fechamento do corpo aos perigos do mundo. Neste mundo religioso se combinavam também as interpretações curativas de indígenas e africanos, produzindo uma visão do corpo, da saúde e da doença atravessado pelo transe e pela magia. Este rico intricado de práticas de cura foi, a partir dos princípios do século XX, fortemente influenciado pelo espiritismo. Apesar de a maioria dos estudos a respeito da doutrina de Kardec ter voltado sua atenção às classes médias das grandes cidades, a doutrina entrou precocemente no interior do país, nas pequenas cidades e zonas rurais do país, e teve forte impacto na formação do próprio João de Deus. Além disso, a umbanda também teve alta penetração nestas regiões. João de Deus é, em certo sentido, produto destas ricas tradições brasileiras de cura. No entanto, como mostro no livro, o médium desenvolveu uma interpretação pessoal de todas estas influências, desenvolvendo um sistema de cura do corpo e do espírito ampla o suficiente para capturar diferentes tipos de público e demandas, proporcionando um espaço de pertencimento a muitos.
Isso explica o fato de que pessoas das mais variadas crenças possam estabelecer uma conexão com João de Deus?
Em Abadiânia se cruzam diferentes personagens, atores famosos, famílias espíritas, jovens mochileiros, gente proveniente da nova era, estrangeiros de culturas muito díspares – alemães, norte-americanos, mas também turcos, indianos, japoneses etc. Ao mesmo tempo, quando você analisa a atuação de João de Deus ao longo de décadas, tal como eu fiz no livro, conclui que suas práticas não se modificaram. Desde os primórdios de sua atuação, João de Deus mantém os preceitos e formas de agir que hoje o caracterizam. Neste universo, eu diria que o que mais chama a atenção é a discrição e economia de gestos e discursos que sempre caracterizaram a atuação do médium. Na Casa Dom Inácio, por exemplo, o passe é dado silenciosamente e na ausência de gestos, a corrente se reúne em também silêncio, com as pessoas mantendo os olhos fechados. Além disso, o médium pouco se interessa por explicar o que ele faz. É especialmente notável a dimensão que a corrente energética de cura assumiu na Casa Dom Inácio. Esta se caracteriza como um lugar de silêncio e introspeção. Alguns denominam a corrente como meditação, embora, para ser precisa, esta formação tenha sua origem no espiritismo. É o que, a meu ver, permitiu que João de Deus tenha sobrevivido a décadas de grande mudança social no Brasil, sem perder a autenticidade ou a relevância.
Mas o que o teria permitido a aceitação global de seus métodos de cura?
De curador popular, que atendia as demandas de uma população carente de assistência médica hospitalar que caracterizava o interior do nosso País em tempos passados, o médium passou a atender as classes médias das cidades grandes, para as quais o tratamento oferecido surge como uma escolha – e não uma necessidade. Finalmente, João de Deus foi capaz de preencher os anseios de uma classe média estrangeira – que é, em si mesma, muito heterogênea – proveniente de diferentes culturas e religiões, chegando a preencher o lugar ocupado pelos gurus indianos. Esta é uma trajetória incrível de um homem de extração popular que se tornou um grande líder no Brasil de hoje, procurado pela mídia, pelas autoridades, pelos artistas famosos, mas, principalmente por todos aqueles que buscam uma nova alternativa de vivência de uma espiritualidade ecumênica, que proporcione a autonomia pessoal que as religiões estabelecidas não oferecem. Finalmente, noto que os estrangeiros que passaram a visitar Abadiânia a partir dos anos 1990 já possuíam familiaridade com a espiritualidade oriental, pois esta aparece em evidência nas construções de uma espécie de espiritualidade “new age”, que encontrou grande adesão nas classes médias dos países desenvolvidos a partir dos anos 1960 – 1970. Estes estrangeiros que agora visitam a casa são em grande parte desta geração – ou filhos dela. De certa, forma, João de Deus preenche uma lacuna deixada por esta demanda.
Você afirma que “com cerca de dez anos, João já era capaz de se relacionar com pessoas que sofriam de doenças mentais, além de acalmá-las e trazê-las à razão”. O que fez João Teixeira de Faria tornar-se João de Deus?
O médium João é uma pessoa de grande carisma pessoal e de entrega muito profunda àquilo que ele denomina “sua missão”. Segundo suas memórias, desde a infância, ele começou a ter experiências extra-sensoriais, embora não as compreendesse. Tendo sido uma criança pobre e trabalhadora, o médium amadureceu muito cedo, enfrentando durante longos anos dificuldades severas. Além disso, ele foi uma criança extremamente personalista e decidida. Mas, o que mais o marcou foi sua natural afinidade para tratar com pessoas acometidas de doenças físicas ou mentais. Já com 14 anos, conta que passou pela sua primeira experiência mediúnica, entrando em transe espontaneamente e operando pessoas física e espiritualmente com grande habilidade. Da adolescência a idade adulta, João de Deus passou por muitas fases, viveu em muitos lugares, trabalhou como pedreiro, toureiro, oleiro, alfaiate, entre muitas outras, sempre se deslocando de um lugar a outro, passando por graves dificuldades econômicas, mas se mantendo em movimento devido, segundo ele, a uma insatisfação interna muito grande. Esta fase, formadora de sua habilidade como curador, aparece no livro como uma longa peregrinação iniciática. Apenas bem mais tarde, em finais da década de 1970, quando ele já tinha quase 40 anos, é que o médium começou a se fixar novamente, primeiro em Anápolis e depois em Abadiânia, ambas em Goiás.
Entre tantas experiências inexplicáveis que você testemunhou em suas muitas visitas a Abadiânia, qual a que teve maior impacto sobre suas crenças e visão da espiritualidade?
Quando se fala das práticas de João de Deus não há como deixar de mencionar as cirurgias físicas que ele realiza em Abadiânia, utilizando-se de instrumentos cirúrgicos básicos – pinças, bisturis, tesouras – ou ferramentas como facas serrilhadas. Assisti centenas dessas operações, nas quais o voluntário – atualmente o médium realiza essas intervenções apenas em voluntários – sem receber nenhum tipo de anestesia, tratamento hipnótico ou assepsia, é operado sem demonstrar dor ou sofrer consequências deletérias (como infecções). Esta atividade faz parte da tradição iniciada por José Arigó, que faleceu em 1971. Parece-me que João de Deus é o último dos médiuns cirurgiões em atuação e, ao que tudo indica, não deixará sucessores. As cirurgias físicas foram analisadas no livro, que busca oferecer um caminho compreensivo para essas intervenções que desafiam os cânones científicos, mas são parte da experiência dos brasileiros com a cura espiritual.