13/05/2019 - 7:00
Há algo nas mãos de João Camarero que só está lá. Uma agilidade sem nervos, uma entrega sem esforços e a certeza de que podem chegar onde quiserem sem deixar rastros entre a partida e o destino. Há sons e pausas, euforia e lamento e uma destreza para desenhar figuras intrincadas com acabamentos de pinceladas barrocas, subindo e descendo pelas sete cordas, algo tão surpreendente que contrasta com a figura de seu próprio rosto, um rosto plácido que se comporta como se nada acontecesse. Chega o momento em que aquelas mãos não parecem mais obedecer aos comandos do cérebro, que poderia tensioná-las diante da racionalização de um desafio, mas de algum lugar que bombeia o próprio sangue.
Seu nome é João Camarero e ele só tem 28 anos. “É um craque do violão de sete cordas. Ele conseguiu pegar informações principalmente de Raphael Rabello e colocar nos dias de hoje. Seu violão é brejeiro, típico do choro, mas ao mesmo tempo ele se desenvolveu como solista tocando músicas de Radamés Gnattali. Acho que ele tem uma bela história com o violão brasileiro pela frente”, diz o bandolinista Hamilton de Holanda, o melhor em seu instrumento. “Se (o violonista) Dino Sete Cordas disse que eu seria seu sucessor, posso dizer então que passo o bastão para João. Esse garoto é a maior revelação do violão”, diz Luizinho Sete Cordas, uma das lendas do instrumento na linguagem do choro.
O segundo álbum de João Camarero, “Vento Brando”, sai agora por um dos mais respeitados selos especializados em violão do mundo, o Guitar Coop. Apesar de impressionar pelo grau de dificuldade, os temas que escolhe, e sobretudo a forma com que apresenta cada um deles, não apostam em um impressionismo baseado na virtude das velocidades e das explosões, o que já é um trunfo. Se fosse seguir a linguagem vigente entre muitos de seus pares do chamado choro moderno – e ela também tem seu valor – Camarero fecharia os olhos, se contorceria na cadeira e buscaria a velocidade das frases que absorvem o espectador desde que Jimi Hendrix reinventou o espetáculo. Pois tudo em Camarero, apesar da técnica sobrando, persegue tanto as notas limpas quanto as pausas profundas.
Sua origem está em Avaré, no interior de São Paulo, onde cresceu vendo rodas de músicos na espaçosa casa dos pais. Ninguém tocava na família mas o garoto estava ali, absorvendo o que podia dos chorões da cidade. Os estudos vieram dos 14 para os 15 anos, quando já sabia o que seria da vida. “Comparado a outros músicos, comecei tarde.” O comentário indica um certo grau de preciosismo. Mais tarde, em 2007, seguiu para Tatuí, onde ficou por um ano no conservatório e abriu as primeiras portas para uma vida profissional. “Foi quando comecei a trabalhar sempre como acompanhante nas sete cordas de aço.” E de lá, finalmente São Paulo. “Ele chegou dizendo que era de Avaré. Quando o vi tocar, falei com Danilo Brito (bandolinista) para que tocasse em seu grupo. Houve uma certa resistência, mas porque não o conheciam. Eu olhava e pensava que João podia estar perdendo coisas da juventude por estudar tanto, mas sua música só ganhava”, lembra Luizinho, o primeiro professor em São Paulo. “Eu quase dormia lá”, fala Camarero. “Ficava o dia todo estudando até que ele me colocou para trabalhar com um monte de gente.”
E um monte de gente começou a conhecê-lo para além de São Paulo. As rodas de choro do Rio, sobretudo de pontos como o Bar Semente, na Lapa, começaram a se acostumar com a presença de um garoto cheio de discrição na postura e desconcertos na execução. Ao vê-lo pela primeira vez, Paulinho da Viola brincou com sua fisionomia e, por tabela, com seu jeito de tocar, dizendo que só podia ser “filho de Raphael Rabello”, um dos mais importantes violonistas do Brasil, morto em 1995. O comentário pegou um familiar de Raphael de surpresa. “Alguém levou isso a sério, mas era só brincadeira”, diz o músico. A parte que não é fake news diz respeito às influências. Raphael é uma das maiores fontes de Camarero. “É de onde eu vim mesmo”, diz sobre seu estilo limpo e preciso de chegar às notas.
E então, ainda dos anjos que aparecem pela estrada, vem Cristóvão Bastos. As aulas com o pianista e arranjador, criador de Nana Caymmi, Chico Buarque, Elton Medeiros e tantos outros, desfizeram o que o ensino erudito muitas vezes cria sem querer. Por ter se embrenhado pelo violão dos clássicos, Camarero tinha regras pétreas pesando sobre sua criação. Como poderia uma mesma música ter um acorde de nona maior com um intervalo de nona menor na ponta? Um choque proibido na teoria, que produziria um desconforto insuportável aos teóricos, um ruído, uma desarmonia típica de quem desconhecia o que estava fazendo. “Ele então me mostrou uma peça de Mahler e provou que era possível sim.” Ou do pensamento harmônico, caminhando de forma vertical pelo braço do violão, e não em blocos. “Isso me permitiu criar mais caminhando pelo instrumento, harmonizando de outras formas, algo que me libertou de muitas coisas.”
Antes de entrar em estúdio para o segundo disco (o primeiro é de 2016) Camarero fez um convite a Ricardo Dias, um mestre da lutheria, construtor de violão dos mais respeitados no País, para produzi-lo. Ele mesmo escreve no encarte: “Um grande amigo me disse de um seu aluno: ‘Precisa conhecer, o cara é incrível!’ ‘Está tendo aula por quê?’ ‘Ele não está satisfeito com a técnica, quer dar uma limpada'”. Dias avisou a Camarero que tinha medo de engessá-lo, já que seu olhar era clássico. “Tolice minha”, disse, depois de conhecê-lo. “João Camarero é ‘inengessável’!”
Aos violonistas, talvez ao contrário de muitas outras linguagens, álbuns não são o retrato de um momento, mas o acúmulo de uma vida. Assim, Vento Brando reproduz desde o olhar do menino arrebatado na casa dos pais de Avaré até as horas de estudo com Luizinho e Cristóvão Bastos. De Radamés Gnattali, há Tocata em Ritmo de Samba e Choro. De Garoto, Inspiração e Enigma. Barrios é lembrado com Valsa nº 3; Canhoto da Paraíba tem Quadradinho; Raphael Rabello e Paulo César Pinheiro vêm com Camará; e João Lyra, que participa da gravação, está presente com Makarasu. A face compositor de Camarero aparece em O Maestro na Farra, Paulistano (com Rafael Mallmith) e no título do álbum, Vento Brando (com Cristóvão Bastos).
“Eu me sinto um pouco andando na contramão do que as pessoas estão fazendo”, ele diz. “Sei que existe o tocar rápido, com muitas notas, mas prefiro sensibilizar as pessoas de outras formas.” Sua aparição serve também para fazer lembrar de que a música, por si, quando verdadeira, já é um espetáculo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
VENTO BRANDO
JOÃO CAMARERO
GUITAR COOP / PREÇO: R$ 30