Aldir Blanc faz 70 anos em setembro; João Bosco, mês que vem, 13 de julho. Cúmplices de música há 45 anos, os dois, ao falar do avançar da idade, traçam previsões sombrias. “Costumo dizer que, no fim, vai dar merda. Mas até lá, a gente continua fazendo música, que é o que a gente gosta, eu tocando meu violãozinho. Eu me reporto à letra de Caça à Raposa (de Aldir), que fala sobre o recomeçar de canções e epidemias, de colheitas, da paixão e do fogo. Eu, que fui mordido recentemente pelo Aedes aegypti, peguei chikungunya e ouvi gentilmente o médico dizer que as dores no corpo vão durar seis meses, penso logo na epidemia”, brinca João Bosco, que trabalha com o parceiro num samba (“a primeira parte ainda não está boa”).

João dá início à série de três shows Aldir Blanc 70 Anos – Bom de se Ver, Bom de se Aldir, que o Centro Cultural Banco do Brasil do Rio abre nesta quinta, 16. No roteiro escolhido por ele para a noite intitulada Compatibilidade de Gênios, só composições a quatro mãos. Sucessos como O Bêbado e a Equilibrista, Incompatibilidade de Gênios, Bala com Bala e O Mestre Sala dos Mares. São caminhos que hoje eles procuram não trilhar. “A essa altura do campeonato, a gente tenta ir mais pelo desvio, para se distanciar dos lugares onde já passou”, conta o violonista.

Psiquiatra até se decidir pela música, Aldir Blanc Mendes nasceu a 2 de setembro de 1946 no bairro do Estácio, região central, e é um ilustre morador da Tijuca, zona norte. Tem nessa série de shows a única comemoração pública do aniversário até aqui anunciada. A concepção é das produtoras Giselle e Solange Kafuri, filha e mãe apaixonadas fãs do compositor – “carioca mesmo” entre os mais cariocas, “ouvires do palavreado”, como definiu o baiano Dorival Caymmi.

Depois de João, apresentam-se Zé Renato (6.ª, 17) e Leila Pinheiro (sáb.,18).

Os espetáculos passaram por Belo Horizonte em 2014. Projeções de fotos, depoimentos em vídeo e recitação de trechos de letra constroem a narrativa de vida e obra de Aldir, de sua personalidade tão ensimesmada quanto bem-humorada à engenhosidade e originalidade de suas criações. A direção musical e os arranjos são do pianista Itamar Assiere.

Entre canções consagradas e lados B, Zé Renato lembrará parcerias de Aldir com Cristóvão Bastos (Resposta ao Tempo), Moacyr Luz (Anjo da Velha Guarda), Luz e Paulo César Pinheiro (Saudade da Guanabara), Silvio da Silva Junior (Amigo É Para Essas Coisas) e Mauricio Tapajós (Querelas do Brasil).

“Minha relação com Aldir Blanc é de admirador total. É uma das minhas grandes referências de compositor brasileiro que reúne olhar crítico com poesia, sempre com aquela marca carioca”, afirmou o cantor Zé Renato.

Leila Pinheiro, que há 20 anos lançou um disco de parcerias de Aldir com Guinga, Catavento e Girassol, escolheu cantar só essa faixa daquele CD. Sua noite terá clássicos de Aldir e João Bosco, como Dois pra Lá, Dois pra Cá, Corsário, Miss Suéter e Bala com Bala.

“Aldir tem uma obra tão absolutamente pessoal e rica, que vai do chão ao teto e ao infinito, abordando assuntos de que ele sabe e não sabe, que inventa. Como poeta e cronista, ele deveria ser estudado nas escolas”, diz a intérprete, após contar a história por trás do disco de 1996. Ela estava em estúdio com Guinga, suas melodias e harmonias, e recebia as letras recém-escritas por Aldir por fax, uma a uma. “Ouvia aquela barulheira deliciosa do fax e era uma folha com a letra. Era um delírio, uma festa”, acrescentou Leila.

A seguir, trechos de entrevista de Aldir Blanc, ao Estado, feita por e-mail.

Como você está de saúde?

Se comparada à saúde de amigos queridos que morreram, minha saúde está relativamente boa.

E como está encarando os 70 anos?

Fazer 70 anos parece, em alguns momentos, como ser atropelado por um caminhão-cegonha.

Você mantém uma rotina de trabalho como compositor?

Sim. Sempre fiz isso. Ouço as músicas sem pegar papel e lápis até que estejam dentro da minha cabeça. É o mais próximo que posso descrever de meu método de compor. Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, coloco letras nas músicas em cerca de 80% dos casos.

Quantas inéditas estima ter guardadas?

Muitas dezenas, talvez mais. Recentemente, achei uma bolsa enorme cheia de ideias e também de letras prontas.

Que parceiro gostaria de ter?

Tenho só um samba com Wilson das Neves, Imperial. Gostaria de fazer mais parcerias com ele. Eu o chamo de “papai” e ele responde: “Ô, filho!”. É meu ídolo. Comecei a tocar bateria por causa dele. Com 60 anos, foi com um cavaquinho para o quintal e tornou-se um de nossos maiores sambistas.

Na sua opinião, quem, da sua geração de compositores, segue relevante?

Todos estão aí na luta contra um mercado apodrecido. Nei Lopes está cada vez mais afiado. Edu Lobo é um gênio injustiçado. As letras do falecido Tite de Lemos para Sueli Costa estão vivas e lindas. A lista é muito grande.

Você acha que a geração nascida nos anos 1940 é a melhor da MPB?

Não. Acho que em cada geração há compositores ótimos e não sinto que uma tenha sobrepujado a outra. Há compositores geniais na geração das serestas, do samba-canção, da bossa nova, no samba feito com o talento e coração, no choro, sendo que esses dois últimos são gêneros atemporais.

Surgiram obras tão boas em anos posteriores?

O problema é que estamos sempre sendo roubados, seja por quadrilhas, seja pelas grandes corporações da internet. É mentira esse papo de “estou cedendo…”. Tudo foi vendido e comprado por uma grana preta. A grande maioria, que não vendeu suas criações, é simplesmente roubada. Jogam conversa fora dizendo “vai melhorar”. Carlos Lyra recebe R$ 5 no trimestre. Uma dessas monstruosas tralhas-trolhas na internet mandou para mim um papel para declaração de Imposto de Renda: R$ 0,10 no ano de 2014 por todas as minhas composições executadas nesse ano fiscal – e é bom lembrar que mais de 60 delas correm mundo em novelas.

Então suas músicas consagradas não lhe rendem muito?

Não. Vivo de adiantamentos e empréstimos. Estou farto de ouvir que se eu fosse um autor americano com mais de 600 músicas editadas, estaria rico. Moro há 30 anos em apartamento próprio (comprado a prazo durante décadas), meu único bem, na Muda da Tijuca, e ainda não tenho a escritura definitiva. Tem muito vivaldino que construiu casa em Búzios com meus direitos autorais.

Você acompanha artistas mais novos, sejam compositores ou cantores?

Até certo ponto. Gosto de Jayme Vignolli e do Água de Moringa, de Moysés Marques, Tomaz Miranda, a esplêndida jovem letrista Manuela Trindade, Tantinho, João Callado, Bena Lobo, Jorge Vercillo, Dorina, Julião Pinheiro e de Gabrielzinho do Cavaco… Alguns jovens me mandam letras por e-mail e muitos são bons, só que para cada grupo de 10 novos, com esse mercado cheio de mumunhas, talvez não apareça ninguém. Você acredita que eu ouvi, ainda rapazola, Corcovado pela primeira vez à tarde na TV? E hoje?

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.