BIRTH OF THE COOL Um artista completo:
Miles foi pioneiro em diversos estilos

No taoísmo, o conceito de Yin e Yang descreve duas forças opostas e complementares. Yin é a noite, a introspecção; Yang é a luz, o sol. John Coltrane e Miles Davis são o Yin e Yang do jazz. Hoje, 51 anos após a morte de Coltrane, fieis e turistas ainda se reúnem todos os domingos para celebrar sua vida e entoar seus mantras e melodias na Igreja de São John Coltrane, em São Francisco. Hoje, 29 anos depois de sua morte, fãs e admiradores também posam ao lado da “Miles Davis Way”, rua no bairro nobre de Upper West Side, em Nova York. No mesmo quarteirão, há cinco anos, a vida de Miles ganhava as telas de cinema com o lançamento de “Miles Ahead”, estrelado por Don Cheadle e Ethan Hawke.

John Coltrane inspirou um culto religioso; Miles Davis virou nome de rua e filme de Hollywood. As homenagens dizem muito sobre a dualidade que separa os dois maiores nomes da história do jazz. Detalhes de suas vidas podem ser vistas – e ouvidas, principalmente – em documentários disponíveis na Netflix: “Miles Davis: Birth of the Cool”, de Stanley Nelson, e “Chasing Trane”, dirigido por John Scheinfeld. Ambos trazem entrevistas, cenas de arquivo e narrações em primeira pessoa (a voz rouca de Miles é feita por Carl Lumbly; a de Coltrane, pelo ator Denzel Washington). Apesar da estrutura narrativa bastante semelhante de seus filmes, os dois jazzistas tiveram trajetórias de vida bem diferentes.

“A atração que Coltrane e Miles ainda exercem hoje vem da música e da atitude revolucionária. ‘Kind of Blue’ e ‘A Love Supreme’ são marcos culturais” Zuza Homem de Mello, crítico e produtor

CHASING TRANE Espiritualidade e misticismo: Coltrane expressava a fé por
meio da música

Miles e Coltrane nasceram no mesmo ano, 1926, e se apaixonaram desde cedo por seus instrumentos. Miles, pelo trompete; Coltrane, pelo saxofone. Nascido em uma família rica, Miles saiu na frente. Começou a tocar aos 13 anos e, aos 18, já dividia o palco da banda de Billy Eckstine com grandes nomes do “bebop” como Charlie “Bird” Parker e Dizzy Gillespie. Miles se mudou para Nova York – viveu na rua que hoje leva seu nome – e matriculou-se na renomada Juilliard School, onde passava o dia estudando partituras de Stravinsky e Prokofiev. À noite, frequentava os lendários clubes de jazz da Rua 52, em Manhattan. A combinação desses dois mundos gerou um gênio. Logo entrou para a banda de Charlie Parker, um dos saxofonistas mais rápidos da história. Ao não querer – ou não conseguir – tocar tão rápido quanto ele, Miles baixou a velocidade do “bebop” e, com isso, criou o novo estilo que veio a ser chamado depois de “cool jazz”. Após uma temporada em Paris, onde teve seu talento reconhecido pelos novos amigos Pablo Picasso e Jean-Paul Sartre, voltou decidido a revolucionar a música mais uma vez. “Kind of Blue”, lançado em 17 de agosto de 1959, é considerado por muitos o maior álbum da história – não apenas do jazz, mas de qualquer estilo musical. No saxofone de “Kind of Blue”, outro músico se destacava: John Coltrane.
“Coltrane e Miles são como ‘Deus e o Diabo na Terra do Jazz’, afirma o músico e produtor João Marcello Bôscoli. “São dois personagens inquietos e, de certa forma, complementares. Enquanto Coltrane era o músico que prezava o ofício, Miles era o artista completo, que cuidava de tudo, da capa do álbum ao visual dos músicos. Ouvir os dois em ‘Kind of Blue’ é como ver Pelé e Maradona jogando no mesmo time.”

MILES DAVIS Influências variadas: Da música clássica aos clubes de jazz de Nova York (Crédito:Divulgação)

Coltrane nasceu em uma família pobre na pequena cidade de Hamlet, Carolina do Norte. A música era uma maneira de esquecer o racismo, assim como eram as forças armadas – logo se alistou para tocar na banda da Marinha.

Quando foi dispensado, em 1946, voou direto para Nova York, onde começou a tocar com Dizzy Gillespie e Thelonious Monk. Em 1955, entrou para o quinteto de Miles Davis para gravar álbuns clássicos como “Relaxin” e “Cookin”. Na época, outro ingrediente criava tensões entre os músicos: a heroína. Miles largou a droga em 1955, época em que Coltrane começou a se viciar. Os dois se afastaram. Em 1957, Coltrane abandonou o vício e descobriu a espiritualidade. Virou devoto não apenas do Deus cristão de seus pais, mas “de todas as religiões”, como costumava dizer. No mesmo ano lançou seu primeiro álbum solo pela Prestige Records.

Em 1959, voltou ao estúdio com Miles para gravar “Kind of Blue”. Além de Miles no trompete e Coltrane no saxofone, o sexteto contava com o baterista Jimmy Cobb, o baixista Paul Chambers, o saxofonista Julian “Cannonball” Adderley e o pianista Bill Evans – um verdadeiro “dream team” do jazz. Era um período tão fértil que, entre as duas sessões da gravação, que ocorreram em 2 de março e 22 de abril, Coltrane gravou “Giant Steps”, também considerado um dos melhores álbuns da história do jazz.

Com o sucesso, Coltrane passou a se dedicar a projetos experimentais. Pesquisou a música africana e a oriental, aguçou a espiritualidade. Em 1965, lançou a obra-prima “A Love Supreme”. “Vi Coltrane tocando ao vivo com Thelonious Monk no Five Spot Café e, mais tarde, com Miles Davis no Birdland, ambos em Nova York”, lembra o crítico Zuza Homem de Mello. “A atração que Miles e Coltrane ainda exercem no público vem da música sensacional e da atitude revolucionária que sempre apresentaram. ‘Kind of Blue’ e ‘A Love Supreme’ são fortes marcos culturais.”

“Coltrane e Miles são como ‘Deus e o Diabo na Terra do Jazz’. O encontro dos dois em ‘Kind of Blue’ é como Pelé e Maradona jogando no mesmo time” João Marcello Bôscoli, músico e produtor

Melodia imortal 

Coltrane radicalizour e se tornou adepto do “free jazz”, estilo que rompeu com estruturas melódicas e harmônicas. Muita gente achou que tinha enlouquecido, mas ele sabia o que estava fazendo. “Não acredito em músicos que ficam parados. Eu não toco jazz, toco John Coltrane”. Morreu pouco depois, de câncer, em 17 de julho de 1967, aos 40 anos. Coltrane não teve tempo de assistir a Miles Davis revolucionar a música novamente, em 1970, com a criação do “fusion” e o álbum “Bitches Brew”. Após um período afastado, quando trocou mais uma vez o trompete pela heroína, Miles voltou aos palcos nos anos 1980. Tocou com nomes como Quincy Jones e Prince, mas sua saúde já estava debilitada. Em 28 de setembro de 1991, aos 65 anos, morreu depois de sofrer um AVC. As mortes de Miles Davis e John Coltrane não apagaram a melodia imortal de suas vidas, que continuam presentes e renascem, a cada homenagem, no volume máximo.

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Em 1964, John Coltrane vivia com a família em uma bucólica casa em Long Island, estado de Nova York. O músico costumava passar longos períodos sozinho no andar superior, comendo pouco e sem falar com ninguém. Alguns dias depois, finalmente desceu as escadas. “A música que querogravar me veio inteira à cabeça.

 

SAXOFONE Confiança e auto-estima: “Não toco jazz,toco John Coltrane”

Pela primeira vez, tenho tudo pronto”, disse, ao encontrar a mulher, a pianista Alice Coltrane. Foi uma epifania: alguns meses depois, ele e seu lendário quarteto formado pelo pianista McCowy Tyner, o baixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones entravam no estúdio Van Gelder, em Nova Jersey, para fazer história. Composto em formato de suíte, em quatro partes (“Acnowledgement”, “Resolution”, “Pursuance” e “Psalm” (Reconhecimento, Resolução, Persistência e Salmo), o álbum foi lançado pela Impulse! Records em 1965. Cinco anos depois, já havia vendido 500 mil cópias – bem mais do que os 30 mil que Coltrane estava acostumado a vender na época.

O jorro visceral e o fraseado melódico e repleto de emoção não vinham apenas dos longos dedos que tocavam o saxofone, mas de uma alma introspectiva, mística, incapaz de se expressar em palavras. O amor era supremo— e o som, divino.