De que material é feito o virtuose, aquele artista capaz de espantar o público e manter a reputação sem cair no excesso de exibicionismo ou de complexidade? Eis a perguntaq que o pianista canadense Jn Lisiecki, de 22, tenta sempre responder. Ele abre a temporada da Sociedade de Cultura Artística e toca Chopin, Rachmaninov e Schumann hoje, dia 13, na Sala São Paulo. Lisiecki alcançou a glória internacional em apenas dois anos de exposição em grandes palcos. É artista exclusivo da gravadora alemã Deutsche Grammophon, a mais prestigiosa do mundo, e tem gravado todo o repertóri romântico e clássico. Nesta entrevista, ele conta o segredo de manter sua arte intacta e sincera, apesar do excesso de fama.

 Como você se sente ao ser descrito como “virtuose”. Você acha que possui um dom inato ou você teve de trabalhar muito para criar esse virtuosismo?

Naturalmente, todo dom tem de vir de dentro de você. Ele não pode ser criado. Para desenvolvê-lo da forma correta, é preciso contar com alguém que saiba fazê-lo. Assim, é uma mistura de dois aspectos: você nasce com o dom, mas precisa trabalhar na técnica e na interpretação para que ele se consolide de uma maneira duradoura. Nunca é demais. Em música clássica, a perfeição é uma meta quase nunca alcançada.

Você é famoso por interpretar peças difíceis de Robert Schumann, Frédéric Chopin e Serguei Rachmaninov. As obras românticas são suas favoritas?

Eu amo naturalmente os românticos. Os três compositores que você mencionou – Schumann, Chopin e Rachmaninov exploram as habilidades pianísticas, cada um a sua maneira. Mas meu repertório não seria interessante se eu não tocasse compositores anteriores e posteriores aos românticos. Eu amo tocar Bach, adoro Mozart e Beethoven. Sem falar em Ravel. Todos os grandes compositores têm um lugar no meu repertório, e eu os uno num programa. Se fosse escolher um, Chopin foi o que mais fez pelo piano, porque ele fez o piano cantar, falar e contar histórias, e forneceu frases muito longas, tudo isso devemos a Chopin.

Você tem algum tipo de superstição quando estuda ou toca?

Não tenho nenhuma superstição. Mas, como artista, eu sigo meus instintos. Quando sigo meus sentimentos, acho que estou fazendo o melhor, mesmo enfrentando dificuldades. O importante é fazer tudo da forma mais natural.

Você já experimentou pânico de palco?

Claro que sim. Medo de palco é algo natural, e acontece toda vez que você está no palco. Você precisa mais do que controlar esse pavor, você deve lidar com ele e internalizá-lo. É preciso usar a energia da ansiedade a seu favor porque ela resulta em desempenhos melhores. Até porque uma apresentação em palco não é igual a você tocar em casa. Você precisa de um elemento extra especial, que só acontece quando você coloca seus nervos à prova.  Normalmente, quanto mais você se apresenta ao vivo, mais fácil se torna.

Como você lida com estúdios de gravação? Você gosta de tocar ao microfone diante de engenheiros de som?

Gosto muito de gravar em estúdio, em meio a toda a parafernália técnica. O artista aprende muito quando toca em estúdio. Eu acho que é uma forma diferente de arte. Num estúdio, você tem que imaginar que está tocando diante de uma plateia, que alguém está ouvindo você. Para mim, tocar ao vivo é a quintessência da arte musical. É uma arte que acontece em determinado momento, é fugaz e instantâneo – é inesperado às vezes. Por isso eu tento capturar esse momento em uma gravação. Existem vários passos para esse método de simulação dar certo. Às vezes toco uma peça várias vezes antes de gravá-la, para me colocar no estado de espírito. Às vezes eu toco a peça de uma vez, sem acrescentar nada e nem consertar esta ou  aquela nota só porque não é perfeita. O mais importante é o fluxo geral, e não perseguir cada uma das marcas da música. Outro aspecto é o acústico. Nos estúdios, não existe uma acústica perfeita – e você interpreta uma peça baseado nas condições acústicas que estão em torno de você, e como a acústica responde ao que você toca. É desafiador fazer isso em um estúdio.

Você assinou com a gravadora Deutsche Grammophon, um dos selos mais prestigiosos da música clássica. A DG ajudou a desenvolver a carreira?

Acho que uma companhia de gravações como a Deutsche Grammophon é uma das poucas que realmente endossa a qualidade de um intérprete. Eu me sinto privilegiado de participar do elenco da DG. A maior parte das gravadoras hoje apenas aluga um estúdio e faz o músico tocar lá. O cuidado da DG é muito maior, ela tem um padrão de qualidade. Mas ela não influenciou diretamente minha carreira.  Hoje em dia são tantas as gravações que você precisa peneirar o material. Sobre minha carreira, acho que o mais importante é continuar a ser fiel a você mesmo. Não importa se você tem uma gravadora ou um agente, você tem que fazer as coisas de coração. Música não é um esporte e o artista não tem que tocar tudo certinho ou competir com outros como se fossem atletas. O fim não é vencer, mas imprimir emoção ao que você apresenta. E isso é fácil de perder quando você segue o que outros dizem o que você deve ou não deve fazer.

Você pensa em gravar compositores modernos e pós-moderno.

Sim, muito. Eu tenho a sensação irritante que eu preciso aprender bastante. Sinto semprea necessidade de ir adiante e dominar outros repertórios. Em compositores como Beethoven e Chopin, você pode dedicar a vida inteira às obras deles e não dar conta delas em alto nível. Eu tento fazer coisas que me levem a novas direções.

De certa forma, o século 20 terminou sem que sua música fosse ouvida ou conhecida, e parece que o 21 vai pelo mesmo caminho. Você acha que tem havido um divórcio entre o público e as obras contemporâneas?

Não acho que haja necessariamente um divórcio entre público e músicos. A música se tornou desafiadora demais para audiências normais entenderem. Mas Rachmaninov, por exemplo, que é um compositor do século 20, ele se faz entender mesmo sendo muito complexo para um público que não conhece música. As pessoas curtem o que ouvem. Ora, isso acontece com muitos compositores atuais de sucesso. Mas, obviamente, há muitos e muitos que escrevem música incrivelmente abstrata. Em relação a esses, tenho dúvida se o público consegue ter prazer em ouvir obras tão difíceis e desafiadoras. Aqui a gente está tratando de um grupo muito pequeno de pessoas. Não é música pop, que é acessível. É preciso encontrar um equilíbrio entre ideias complexas e exóticas e a capacidade de ser compreendidas por um público mais amplo. Não estou dizendo que não haja no público pessoas com grande experiência de ouvintes ou que não compreendam perfeitamente uma música complexa. Mas ouvir música abstrata pela primeira vez exige atenção. Aos poucos, você se acostuma e passa a gostar de um tipo de música mais complexo. É um desafio você ouvir pela primeira vez  uma sinfonia de Mahler. Em música, é preciso ser complexo e acessível ao mesmo tempo. Em resumo, existem dois tipos de música, uma mais acessível que outra. Espero tocar os dois tipos.