Ivan Serpa foi um dos mais importantes mestres da história da arte brasileira, mas faleceu precocemente aos 50 anos. A memória de seu trabalho continua viva graças à paixão de sua esposa Lygia, uma bibliotecária metódica que catalogou e guardou por quarenta anos sua obra com esmero e carinho, assim como fizeram a cunhada e o sobrinho de Van Gogh. Merecidamente, seu trabalho é tema da exposição “Ivan Serpa: a expressão do concreto”, que está no CCBB- Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro e que seguirá para Belo Horizonte, São Paulo, e Brasília.

A pluralidade criativa e as expressões de Ivan Serpa ratificam seu papel na arte moderna brasileira e na criação e liderança do Grupo Frente, composto por importantes nomes como Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, Franz Weissmann, Abrahan Palatinik e Aluísio Carvão. Ivan Serpa surpreende até hoje por sua extrema sensibilidade e por seu permanente compromisso com a liberdade que alimenta a verdadeira criação artística. Formou muitos artistas e deixou um rastro de liberdade na arte brasileira.

A exposição tem curadoria de Hélio Márcio Dias Ferreira e Marcus de Lontra Costa, dois feras no mundo da arte. Hélio é artista visual, Mestre em História da Arte pela UFRJ e doutor em Educação pela UFF (com parte dos estudos realizada na Universidade Paris III – Sorbonne, França), pesquisador e um dos maiores especialistas na obra do artista. Essa exposição acontece graças à sua dedicação para difundir o trabalho de Ivan Serpa. Marcus de Lontra Costa foi ex-diretor na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, assumiu em 1990 a direção curatorial do MAM RJ e implantou o MAMAM-Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, em Recife. Outra novidade é que será lançado em breve um maravilhoso livro sobre Ivan Serpa.

A mostra percorre a rica trajetória do artista, apresentando uma retrospectiva completa sobre sua vida e seu trabalho que o tornou importante referência na história da arte brasileira moderna e contemporânea. Apresenta mais de 200 trabalhos, de diversas fases, com diversidade de tendências, técnicas e processos criativos. Diversos itens pessoais compõem o ambiente da mostra. Até o radinho, com o qual escutava os jogos do Flamengo, está na exposição.

Tinha apenas 50 anos quando faleceu de complicações causadas por cardiopatia congênita grave, diagnosticada ainda quando era muito jovem. Talvez por isso, tinha sede de viver e muita energia para produzir. Estimulado por uma tia francesa, apaixonou-se por arte e iniciou seu aprendizado nos anos 40 no ateliê do artista austríaco refugiado Axel Leskoschek.

Sua arte foi rapidamente reconhecida. Participou na primeira Bienal de Artes de São Paulo (1951), recebeu o prêmio de Jovem Artista e fundou, em 1954, o Grupo de Frente para estimular um conjunto de artistas e suas novas criações. Seu trabalho era genial e sua capacidade de experimentar ‘o novo’ surpreende até os dias de hoje.  Morou no exterior por dois anos e estava fascinado pela Espanha, mas seus planos de morar nesse país com a família foram suspensos com a sua morte precoce.

Ivan Serpa infelizmente não foi reconhecido como merecia ser. Tinha um virtuosismo na sua linguagem geométrica e abstrata, bem como numa qualidade ímpar de rigor formal e meticulosidade no conduzir dos riscos e do pincel. Assim como o pintor catalão Picasso, Ivan Serpa teve várias fases artísticas, experimentos muitos materiais e estilos. Sua capacidade artística permitiu que ele transitasse de grandes telas a desenhos a nanquim, meticulosamente produzidos pontinho por pontinho. Trabalhou diferentes fases, que passam por tons terrosos, alaranjados, pretos e azuis. Em um determinado momento, produziu uma grande obra de tons azulados para presentear o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, que operou seu filho mais novo de um problema de má formação no céu da boca.

Além de artista e professor, Ivan Serpa também foi funcionário restaurador de obras raras da Biblioteca Nacional por quatorze anos, onde tornou-se um especialista na restauração e no manuseio de papéis. Tudo ao redor do artista era motivo de inspiração para o surgimento de obras magníficas, muitas vezes até de linguagem concretista.

Em dado momento, na década de 60, Ivan Serpa dedica-se à investigação de figuras de animais e humanos, criando as séries “Bichos” e “Mulheres e Bichos”. Conforme a busca da perversidade interna, analisada pelo papa da psicanálise Jung, pinta animais (ferozes, libidinosos e vorazes) ao lado de figuras de mulheres, como uma busca por ninfas em um cenário de luxúria. Para Hélio Ferreira, essa linguagem bastante expressionista revela um Serpa bastante erótico e bandalho, deixando de lado o impoluto e ilibado rigor geométrico, colocando sobre telas e papéis todo um universo de animalidade úmida, com humanos mergulhados no mundo do desejo carnal.

Para o pesquisador, os bichos exibiam presas, dentes, garras, grandes olhos e um despudor incontrolável nos seus sexos famintos. Com isso, o erotismo dessa fase que anunciaria uma linguagem que viria nascer mais adiante, em formas mais discretas e elegantes, naquilo que foi conhecido como fase “Op-Erótica”.

Temas da época, como a fome, a opressão, a violência e a Guerra do Vietnã, impactaram seu trabalho. Com seu pincel, mostrou o nosso lado perverso, dizendo que não criava obras para as salas de visitas e, sim, para marcar a história. Essa fase, conhecida como “Negra”, era denominada pelo artista como “Crepuscular” e coincidiu com o início da intervenção militar no Brasil. As figuras que desenhou nesse período são marcantes. Telas e desenhos em papel mostram humanos esqueléticos e cabeças gigantescas, em cenas de sofrimento, luto ou de desespero. Ao contrário do que se possa imaginar, as criaturas não nasciam de um risco aleatório, mas sim de um rigor formal que nunca o pintor abandonou, chamado de “expressionismo concreto” por Hélio Ferreira em sua dissertação de mestrado sobre o pintor.

O ateliê do Méier era pequeno para tantos mundos almejados por Ivan Serpa. Sua fase “Op-Erótica”, explora os efeitos ópticos com uma cuidadosa fatura em preto e branco, com bico de pena sobre papel, criando belos desenhos. Algumas dessas imagens insinuavam partes do corpo como axilas, vaginas e ânus. Os milhares de pontinhos deixavam a vista os olhos de Ivan Serpa absolutamente vermelhos após um dia de trabalho. Os nossos, como espectadores, ficam igualmente vermelhos, mas de emoção ao ver essas obras produzidas com bico de pena, caneta tinteiro ou esferográfica.

O pesquisador tem a sensação de que o trabalho de Ivan Serpa era tão intenso como quem psicografa alguma coisa por meio de sua arte. Essa ideia ganhou força com a série “Antiletra”, criada sobre papeis impressos já existentes. Rabiscos, escritas em uma caligrafia inteligível e desenhos transformaram meros envelopes, cartas e livros em verdadeiras obras de arte.

Charles Baudelaire disse, no poema “Le Phares”, que grandes artistas como Rubens, Leonardo da Vinci, Rembrandt, Michelangelo, Goya e Delacroix, funcionavam como faróis. Sem dúvida, Ivan Serpa era um desses faróis e sua obra continua viva graças ao trabalho de artistas, seguidores e de especialistas, como Hélio Márcio Dias Ferreira, que nos ajudam a entender seus movimentos. Se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo sugestões pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter.