14/11/2024 - 10:40
Aos 54 anos, Carmo Dalla Vecchia sabe que não é mais um menino — e considera isso um privilégio. Estrelando a peça “Forever Young”, na qual interpreta um senhor de 90 anos, o ator se diz feliz por ser presenteado, todos os dias, com o benefício de ver o tempo passar.
Em bate-papo de coração aberto ao IstoÉ Gente Como a Gente — projeto do site IstoÉ Gente que aborda o lado pessoal e espontâneo de personalidades brasileiras —, Carmo ainda comenta a relação com o autor João Emanuel Carneiro após 17 anos de casamento, e garante nunca ter tido medo de ser considerado um “nepomarido”. O ator ainda diz se sentir “audacioso” por ter sido um dos primeiros famosos a investir no processo de barriga de aluguel para se tornar pai do pequeno Pedro, de 4 anos.
Dentre os temas abordados, o artista também revela que nunca escondeu seu casamento, apesar de só ter falado publicamente sobre o assunto em 2021, e conta como lidou com especulações, assédio e homofobia no passado e no presente.
Ator de novelas como “Cobras e Lagartos” (2006) e “A Favorita” (2008), Carmo ainda conta, com bom humor, sobre episódios que teve com a socialite Narcisa Tamborindeguy, que expôs sua sexualidade.
“Na verdade, quem fez o meu ‘outing’ [exposição da sexualidade] não fui eu, foi a Narcisa. Quando o meu marido estava escrevendo ‘Avenida Brasil’, a gente teve de se mudar de casa porque começou uma obra embaixo e em cima do lugar onde a gente morava. Em duas semanas, fomos ser vizinhos da Narcisa, morar no mesmo prédio que ela. E, de vez em quando, a gente almoçava no Copacabana Palace. E aconteceu mais de uma vez de eu entrar no Copacabana Palace para almoçar e a Narcisa gritar: ‘Carmo! Pede para o seu marido me botar na novela dele!’ Quando ela fazia isso, muito tempo antes de eu fazer meu ‘outing’, eu recebia todos os olhares do restaurante inteiro. Então, na verdade, quem fez o meu ‘outing’, não fui eu, gente, foi a Narcisa. Muito tempo antes, muito tempo antes de eu querer, inclusive, fazer o ‘outing’, a Narcisa já fazia isso por mim”, conta Carmo Dalla Vecchia.
Acompanhe a entrevista completa:
IstoÉ Gente: em cartaz com a peça ‘Forever Young’, como você reflete sobre envelhecer?
Carmo Dalla Vecchia: divulgar a peça, falar sobre o espetáculo, me obrigou a criar internamente um pensamento sobre uma época da minha vida que ainda não tinha surgido. Claro que, como ela ainda não veio, eu não vou saber exatamente, mas a gente sente o tempo passando na nossa história.
Muitas coisas eu já sei que hoje são diferentes de quando eu tinha 20 anos de idade. Eu achava, quando eu era muito jovem, que eu não ia me relacionar bem com o tempo, e isso não acabou acontecendo. Isso tem muito a ver com a minha prática budista […] Hoje estou com 54 e gosto muito do tempo.
Gosto de me olhar no espelho e me achar parecido com meu pai, perceber que eu estou ficando parecido com ele, e que eu não era tanto. Eu gosto de perceber que hoje eu sei coisas que antes eu não sabia. Eu gosto de ter entendido que a maturidade fez com que eu me tornasse um bom pai e que, na hora que o meu filho veio ao mundo, pelo fato de eu já ter uma certa idade, eu estava infinitamente muito mais preparado.
Eu gosto do tempo. Ele não é uma coisa que me incomoda, eu acho meio que um troféu, porque muitas pessoas que eu gostava, infelizmente — muitos que inclusive tinham a mesma idade que eu — já partiram.
Esses dias aconteceu uma coisa engraçada na peça. Uma senhora chegou e disse assim: ‘Olha, aquele ali é meu filho, ele é parecido com você’. Eu olhei, o menino era um gatinho. Ele devia ter 26 ou 27 anos. Eu disse: ‘Seu filho é lindo!’, e ela disse, ‘Você também era, quando era jovem’. Nessas horas que a gente tem vontade de dizer: ‘Você está sendo grosseira e vai se f*der’ [risos].
Atuando no teatro, como é passar longos períodos longe da sua família?
CDV: a gente tem um lema lá em casa, que é assim: a gente não tem o direito de ser chato um com o outro. E eu acho que todo mundo entende que, para você ser feliz, tem que ter seu trabalho e fazer as suas coisas. Acho que até meu filho entende isso conscientemente de uma forma muito boa.
Acontece um efeito com ele, que é, quando eu me afasto de lá, ele fica doente. E eu era assim quando era criança. Eu adorava ir para a casa dos meus avós, que ficavam em Carazinho, no Rio Grande do Sul. Quando eu ia para lá, eu ficava doente. Eu adorava ir pra Carazinho, mas eu ficava doente.
Quando eu me afasto do Pedro, ele fica com dor de garganta, ou ele quebra o braço, ou os dedos dele descascam. Alguma coisinha acontece. Quando eu estou perto dele, nada disso acontece. Eu acho que isso tudo é sinônimo de falta, porque ele é muito apegado comigo.
Por que você e o João Emanuel Carneiro esperaram mais de 10 anos para ter o primeiro filho?
CDV: eu acho que foi um processo de maturação dos dois. E foi um processo de maturação, talvez, do universo, também. Porque se a gente for pensar, essa experiência [barriga de aluguel] não era muito vista, contada ou realizada. O próprio casamento gay existe há muito pouco tempo, a própria barriga de aluguel. Glória Perez, quando escreveu na novela, ela se antecipou. Eu acho que estava começando a existir isso entre casais heterossexuais no Brasil. Não existia para casais homoafetivos. Eu acho que a gente até foi bem audacioso, se antecipou.
Como você acredita que ter tido um relacionamento difícil com seu pai reflete em sua própria ideia de paternidade?
CDV: eu tive a sorte de ter tido um distanciamento muito grande do meu pai, mas que no final foi muito bonito. Ele encerrou a história dele neste mundo com uma aproximação muito bonita comigo. Isso influenciou na paternidade porque, de alguma maneira, a minha paternidade é a continuação da experiência que eu tive com a paternidade do meu pai.
Dentro daquilo, existiram exemplos que eu disse que eu não posso repetir. E mais do que isso, sendo budista e entendendo um pouco o que significa a questão do karma, eu tinha uma preocupação muito grande de não repetir com o meu filho, talvez, a ausência do meu pai, de uma forma que isso fosse atrapalhar o desenvolvimento dele.
Por exemplo, se eu tive um pai que foi ausente, eu posso dizer que eu estou sendo o melhor pai sendo presente, mas essa presença pode significar autoproteção demais. Eu posso virar um cara que não deixa o meu filho fazer nada. Acaba se tornando a mesma energia numa polaridade diferente.
Eu sabia que, de alguma maneira, eu tinha que resolver em vida a questão com o meu pai, para que aquilo não fosse passado para a criança. E eu acho que eu tive a sorte de… Eu tinha que ter conseguido fazer isso. Foi uma história muito bonita.
Antes de trazer o assunto a público, você e o João ‘escondiam’ o casamento ou só não faziam questão de divulgá-lo?
CDV: a gente não escondia porque qualquer pessoa que minimamente me conhecia, sabia. Mas minimamente, mesmo. Por exemplo, guichê de aeroporto: ‘Nome de contato: tal. Grau de parentesco: marido’. E eu estava fazendo o galã da novela das 20h. Eu sentia que dava um silêncio naquelas pessoas, e quando eu virava as costas, pegava fogo atrás de mim.
Eu, às vezes, até me vi em situação de entrar num táxi, ver o motorista de táxi com uma foto linda da família dele e dizer: ‘Que lindo o seu filho’. E ele diz: ‘Você tem filho?’ Eu digo, ‘Eu tenho filho, está com um ano’. Ele diz: ‘Ah, que bacana, deve ser muito bonito o seu filho, sua esposa’. Eu digo: ‘Olha, o senhor me desculpe, eu não estou falando isso porque eu quero chocá-lo, mas eu não tenho esposa, eu sou casado com um homem, ele é filho de barriga de aluguel’.
Algumas vezes, acabou o assunto. A pessoa não quis mais conversar comigo. Muitas outras vezes, a pessoa continua a conversa.
Em algum momento você e o João tiveram medo de acusações de nepotismo?
CDV: eu acho que não, porque eu tive a sorte de ser absorvido por um mercado de uma maneira muito grande, não só pelas novelas dele. Então, eu acho que se esse medo houve, ele rapidamente foi dissipado, porque eu acabei fazendo muito mais novelas de outros autores do que trabalhos que eu tenha feito com ele. E eu sempre tive uma carreira tão forte na televisão quanto no teatro, sempre muito presente nos dois lugares. Eu acho que eu acabei não passando por esse questionamento, porque eu não era um cara que só fazia as novelas dele.
Como é trabalhar em novelas do seu marido?
CDV: era sempre uma alegria fazer novela dele, porque eu acho o texto dele muito coloquial, muito verdadeiro. Ele é um autor muito especial, era maravilhoso. Mas a gente não tem muita essa troca em casa. Em casa, como eu estou trabalhando e ele está trabalhando, o nosso assunto não é necessariamente, o tempo inteiro, trabalho. Eu quero falar de outras coisas, também; eu quero jogar cartas, quero fazer outras coisas.
Antes de tornar seu casamento público, como você lidava com especulações e assédio?
CDV: eram escrotos, né? Sempre foram, né? Naquela época, sempre foram muitos escrotos comigo, porque as pessoas sabiam e queriam fazer essa fofoca. E ao mesmo tempo era feio fazer fofoca, porque estava começando a ficar uma saia justa você obrigar uma pessoa a fazer um ‘outing’. Então era a eterna pergunta: ‘Que tipo de mulher você gosta?’ Era o que eu enfrentava. E são as mesmas pessoas que hoje levantam a bandeira LGBT, a bandeira racial, a bandeira dos PCDs. São as mesmas pessoas que há sete anos atrás enfiavam uma lâmina na minha garganta, loucas para falar para todo mundo que eu era ‘viado’.
Atualmente, como você lida com a homofobia?
CDV: eu acho que eu sou muito protegido por uma bolha. Eu sou protegido por uma bolha talvez social, talvez por ser branco, talvez pelo lugar onde eu moro, talvez por morar em uma capital… Talvez se eu morasse no interior seria diferente. Mas eu acho que, hoje, meio que vira um consenso. Você pode ter pessoas que pensam diferente de você, e todos os pensamentos devem ser respeitados, mas hoje nós temos leis.
O pior do preconceito hoje é a homofobia que não dá seu nome. É quando a pessoa não gosta de você e não sabe direito o porquê, e ela vai encontrar outra razão para dizer que não gosta de você. Ela não vai dizer que ela não gosta de você porque você é gay, ela vai dizer: ‘Ah, é um garoto muito amostrado’. ‘Mas por que ele precisa falar tanto que ele é gay?’ E aí você diz para a pessoa: ‘Você está sendo homofóbico’, e ela diz: ‘Eu? Eu não sou homofóbico. Imagina, eu não sou homofóbico de jeito nenhum’.
Eu acho tão louco quando uma pessoa heteronormativa me diz que não é homofóbica, porque eu não sei se eu não sou. Eu tive a necessidade gigantesca de falar a respeito da minha orientação sexual para tentar diminuir o meu próprio preconceito comigo mesmo. Aí vem uma pessoa heteronormativa me garantindo que, por mais que exista uma teia na sociedade em que você foi criado que dizia que pessoas como eu eram erradas, por mais que essa teia sempre tenha existido, a pessoa me garante que ela não tem preconceito. Ela nem se questiona. Ela vai olhar para mim: ‘Não, eu não tenho preconceito. Tenho não. Minha filha é gay. Não, não tenho não’. Aí você entende, justamente. Ela tem muito preconceito porque a filha é gay.
Tem alguns momentos da história em que a gente tem de se posicionar da maneira correta. Quando Hitler fez a chacina que fez, certamente ele foi apoiado por muita gente na Alemanha, que hoje olha para a bizarrice de tudo o que aconteceu e diz: ‘Como nós não vimos o que estava acontecendo debaixo dos nossos olhos?’ Eu acho que, em determinadas épocas do tempo, pessoas têm que tomar partido certo na história.
Por mais que exista a dona de casa que more em Rondônia, ‘Ah, mas ela não vai aceitar…’ Então educa ela, ajuda a gente, por favor. Educa ela, porque a cada pessoa que se autoextermina, existem oito delas a mais que são pessoas da nossa comunidade. É legal ser bacana no mundo.
Você já se sentiu pressionado pelo estigma de ‘galã’ que sempre teve?
CDV: ah, claro. Eu sou uma sanfona, né? Eu adoro comer, eu como, às vezes eu emagreço, eu como, às vezes eu emagreço. Há pouco tempo, eu deixei a barba crescer. A minha barba é branca. ‘Você está doente? Você já foi tão bonito. O que aconteceu com você? Nossa, esse menino está tão diferente. Ele era tão bonito quando ele fazia a novela. Olha, ele está até falando diferente. Ele mudou completamente’.
Eu fico pensando, ‘Estou falando diferente?. O que é que eu estou falando diferente, gente? Será que eu afinei a minha voz? Eu acho que minha voz, com o tempo, ficou até mais grave. O que é falar diferente? Será que eu estou me expondo de uma maneira mais tranquila e as pessoas acham isso estranho?’ Existe essa cobrança. Mas, depois de um tempo, eu comecei a entender que essa cobrança é muito mais uma cobrança individual de cada um.
As pessoas me viram fazendo muito personagem bonitinho na novela. Passaram-se 20 anos. O tempo passou para mim e para quem me viu. Hoje, quando as pessoas olham para mim e eu não tenho mais 20 anos, eu não tenho mais 30 anos, eu acho que é um questionamento que elas percebem nelas mesmas, e isso as incomoda. Mas aí elas apontam uma arma para mim e dizem: ‘Nossa, você está feio. Você envelheceu. Você era bonito. O que aconteceu com você?’
Quais são os hobbies que poucas pessoas sabem que você tem?
CDV: eu comecei muitas coisas novas com o tempo. Comecei a tocar piano aos 46, a fazer aula de sapateado aos 48, 49. Quanto a hobbies, eu sou louco por quebra-cabeças, a vida inteira eu montei. Depois que meu filho nasceu, eu comecei a montar menos, mas tenho um lugar na minha casa onde eu guardo os quebra-cabeças que eu já comprei para montar […] Eu tenho uns 70 a serem montados.
Estou produzindo um espetáculo agora, pela primeira vez, para fazer um monólogo. Primeira vez que eu estou escrevendo um texto.
Eu fui fazer musical há 7 anos, apesar de já ter estudado canto há mais tempo do que isso. Eu comecei num histórico de musicais há pouco tempo.
E como é a experiência de empreender com sua marca de camisetas?
CDV: é uma delícia. É uma marca de camisetas que tem a ver com a minha história, tem a ver com o que eu gostaria de usar e os recados que eu gostaria de dar. Eu faço coisas que é porque tenho vontade de fazer, nem sei se aquelas coisas são tão comerciais assim. E a minha coleção de camisas eu acho que fala muito da minha comunidade.
Às vezes eu percebo que alguns gays têm dificuldades em dizer que são gays, e eu sou o cara que pega uma camisa escrito ‘bichona’ e vou para a academia malhar — eu não tenho problema com isso. Mas eu percebo que algumas pessoas olham e dizem: ‘Filho da p*ta! Por que ele faz um negócio desse?’ Eu percebo que os gays às vezes têm dificuldade de vestir uma camiseta que tem a identidade da sua própria história. Aí vem o preconceito velado. A primeira coisa que vão dizer: ‘Mas precisa falar tanto sobre isso? Precisa botar uma bandeira?’ Não, não precisa. Mas talvez isso fosse ajudar muita gente no meio de uma estrutura de vida na qual o preconceito ainda é muito forte.
Algum de seus personagens te marcou pessoalmente?
CDV: eu acho que talvez dessa peça que eu estou fazendo, porque eu faço ele há muito tempo. Esse personagem sou eu também. E ele me remete muito à minha família, também me remete muito ao meu avô falando. Então, de vez em quando, quando eu vejo, eu estou brincando com o personagem por aí. Todas foram histórias que eu contei, que geralmente servem para que eu sempre esteja contando a última história, que é a que eu faço no presente. Se você for pensar em toda a sua história, o que interessa é acabar sendo sempre presente.
Eu sempre acho que o que eu estou fazendo hoje vai ser a coisa mais importante de todas as histórias que eu tenha contado.
Se pudesse, você faria algo diferente em sua vida?
CDV: eu acho que não tem nada, porque é como se eu pudesse querer voltar no tempo. É como se eu pudesse querer inventar uma regra que não existe na nossa história. Eu não tenho como ter 20 anos e ter a história que eu tenho aos 54, então não tem nada que possa mudar. E eu também acho que consegui conquistar muitas coisas de nível não-material na minha história, através das experiências que eu passei até hoje.
Não, não tem como mudar nada, não. Tem coisas que a gente lembra às vezes na nossa vida, ou de coisas que a gente falou, ou de pessoas que a gente magoou, que a gente não gostaria de ter feito, ou gostaria de ter voltado no tempo e não ter magoado aquela pessoa, ou ter dito aquela bobagem. Mas se eu não tivesse feito aquilo naquele momento, provavelmente eu iria fazer daqui a pouco, porque eu não aprendi que aquilo não se faz. Então a experiência que a gente tem é o melhor que a gente pode ter.