ISTOÉ CULTURA
Estava no meio da redação desta edição quando fui pego de surpresa com o triste falecimento do gênio visionário David Lynch. Seria impossível continuar como se esse grande evento não tivesse o poder de interferir no que havia programado. Ao mesmo tempo, não cabia à coluna em si noticiar sua morte, uma vez que ela está sendo publicada um dia após essa grande perda. No entanto, fiquei pensativo sobre se deveria pensar em algo completamente diferente para esse espaço justamente tão em cima da hora.
Chegamos a publicar aqui no site IstoÉ um pequeno guia de onde encontrar os trabalhos disponíveis do cineasta nos serviços de streaming aos quais temos acesso no Brasil. Pequeno, de fato, pois a oferta nas incontáveis plataformas beira o ridículo — apenas cinco títulos, em uma carreira que soma dezenas de trabalhos no audiovisual, entre longas e curtas-metragens, séries de TV e vídeos experimentais de um dos cineastas mais importantes, criativos e únicos da história do cinema.
Em meio a tantas ofertas de serviços que tentam a todo custo conquistar nossa atenção, nossas horas de vida e, principalmente, nosso dinheiro, é profundamente lamentável que a disponibilidade de títulos de um nome tão grande quanto o de Lynch dê para contar nos dedos de uma única mão. Já seria suficientemente triste se o cineasta americano fosse o único a sofrer com isso, mas são incontáveis os grandes nomes da história do cinema, entre realizadores e realizadoras, atores e atrizes, que são praticamente (quando não totalmente) ignorados pelos serviços disponíveis.
Cada vez mais, especialmente nas plataformas mais populares, a oferta de conteúdo se resume a obras produzidas há pouquíssimo tempo. Há um interesse praticamente nulo em preservar e tornar disponível ao público obras com mais de 10 anos de vida. O cinema tem aproximadamente 130 anos de existência, e olha que é uma das artes mais jovens que temos. No entanto, a sanha capitalista das grandes corporações que detêm a propriedade dessas obras prefere ignorar sua história, uma vez que permitir o acesso a ela talvez diminuísse (em quase nada, eu poderia apostar) as cifras colossais no faturamento com assinaturas.
Nos acostumamos com o fato de que podemos pagar dezenas de reais pela assinatura de um serviço (seja ele qual for) que não chega nem perto de oferecer em troca um conteúdo satisfatoriamente variado, de diferentes épocas e nacionalidades, com visões mais plurais sobre a vida e o mundo. Mas imaginem só se todos os museus pelo mundo só disponibilizassem pinturas e esculturas de obras deste último século, salvo uma ou outra exceção. Nada contra a arte contemporânea, seja ela qual for, mas já pararam pra pensar se nunca tivéssemos a chance de visitar um museu e ver um quadro de Picasso, Monet, Salvador Dali ou Van Gogh? Uma escultura de Rodin, Bernini, Michelangelo ou Aleijadinho. E se nunca pudéssemos virar as páginas de livros escritos por Machado de Assis, Jane Austen, Eça de Queirós, Virginia Woolf, Jorge Amado, Simone de Beauvoir ou Clarice Lispector?
Quão pobre seria a nossa vida sem acesso à arte produzida e preservada ao longo de séculos? Ainda que muitas vezes também limitada a locais elitizados e também sob a guarda de quem não tem muito interesse em facilitar o acesso a um maior número de pessoas, vale dizer. Quão pobre já não é hoje a nossa vida sem o acesso a tantos filmes em pouco mais de um século de existência do cinema? Se vivo, um artista do porte de David Lynch, com uma vasta obra cinematográfica, merece aos olhos das plataformas de streaming a oferta de apenas cinco títulos, quantos deles sobreviverão daqui a 10, 15, 50 anos? E Lynch passa longe de ser dos realizadores mais desprezados nas plataformas. Muitos nomes tão importantes quanto o dele não possuem uma única unidade de obra acessível ao público assinante das principais plataformas de streaming.
Mestre do cinema surrealista, um verdadeiro gênio que não via limites para sonhar e realizar, que soube como poucos transpor seus sonhos para as telas, seja da TV ou do cinema, e permitiu ao longo de décadas que pudéssemos fazer parte de suas viagens oníricas. David Lynch, a pessoa, nos deixou nessa última quinta-feira, mas o artista, aquele que as plataformas de streaming parecem não fazer questão de manter vivo, sobreviverá a elas, e testemunhará do éter a derrocada de todas e cada uma, entre um gole de café quente e um trago de seu cigarro.
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CINEMA
Nem tudo está perdido: MIS realiza mostra com clássicos de Billy Wilder
Embora a abertura dessa coluna tenha trazido um desabafo em relação à pouca valorização do cinema de décadas atrás, vez ou outra algumas iniciativas ainda resistem na árdua tarefa de celebrar e apresentar ao público obras que raramente vemos nas plataformas do momento. Uma delas é a a exposição do MIS “O Cinema de Billy Wilder”, que se encerra no próximo dia 26, mas que conta em sua última semana com uma mostra com oito filmes de outro dos cineastas mais criativos do cinema mundial.
Em parceria com (ora, vejam só) o serviço de streaming Belas Artes à La Carte, o MIS realiza sessões entre os dias 21 e 26 de filmes como “Crepúsculo dos deuses” (1950), “Sabrina” (1954), “Pacto de sangue” (1944) e “A montanha dos sete abutres” (1951), entre outros. Os ingressos para as sessões custam entre R$ 5 e R$ 10, e para a exposição, entre R$ 10 e R$ 20, com entrada gratuita nos dias 25 e 26. Para conferir a programação completa, acesse mis-sp.org.br
MIS. Avenida Europa, 158 – Jardim Europa, São Paulo. De terças a sextas, das 10h às 19h; sábados, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h. Classificação: livre.
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TEATRO
Mais de 60 mil pessoas já viram, “agora só falta você”
Há um ano em cartaz, o espetáculo “Rita Lee: Uma Autobiografia Musical” ganha uma nova temporada a partir do dia 31 de janeiro, até 27 de abril, no Teatro Porto, em São Paulo. Protagonizado por Mel Lisboa, que interpreta a Rainha do Rock pela segunda vez nos palcos (a primeira foi no musical “Rita Lee Mora ao Lado”), o novo espetáculo é inspirado na autobiografia da cantora, lançada em 2016, para a qual Mel também emprestou sua voz na versão em audiolivro lançada em 2022.
“A vida de Rita precisa ser contada e recontada. Sua existência transformou toda uma geração. E continua a conquistar fãs cada vez mais jovens. Rita não é ‘somente’ a roqueira maior. Ela compôs, cantou e popularizou o sexo do ponto de vista feminino em uma época em que isso era inimaginável. Ousou dizer o que queria e se tornou a artista mais censurada pela ditadura militar. Na época, foi presa grávida. Deu a volta por cima e conquistou uma legião de ‘ovelhas negras’. Se tornou a mulher que mais vendeu discos no país e a grande poetisa da MPB”, diz Mel Lisboa.
Rita Lee – Uma Autobiografia Musical. Roteiro e pesquisa: Guilherme Samora. Texto: Márcio Macena. Direção geral: Débora Dubois e Márcio Macena. Direção musical: Marco França e Marcio Guimarães. Coreografia: Tainara Cerqueira. Elenco: Mel Lisboa, Bruno Fraga, Fabiano Augusto, Carol Portes, Debora Reis, Flavia Strongolli, Yael Pecarovich, Antonio Vanfill, Gustavo Rezê e Roquildes Junior. Duração: 120 min. Classificação: 12 anos.
Teatro Porto. Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos, São Paulo. De 31/01 a 27/04. Sextas e sábados, às 20h; domingos, às 17h. Ingressos: entre R$ 20 e R$ 200 em sympla.com.br
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Clássico de Gianfrancesco Guarnieri ganha montagem atualizada
Estreia nesta sexta-feira, 17, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, uma nova adaptação do clássico “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006). A peça tem direção de Rogério Tarifa e montagem do grupo Teatro do Osso, que atualiza a dramaturgia para dialogar com o contexto contemporâneo.
A peça foi escrita por Guarnieri em 1973, durante a Ditadura Militar, e chamou atenção por expor os desafios de se fazer arte em um contexto de repressão. Na nova montagem, ela preserva sua essência crítica e amplia o diálogo com o presente, conectando questões sociais da época em que foi escrita aos desafios culturais do nosso tempo.
A narrativa acompanha um grupo de artistas que ensaia uma peça a dez dias de sua estreia. Enquanto pressões externas, como dívidas e restrições financeiras, ameaçam o andamento da produção, a trama reflete a precariedade e a persistência da arte em tempos complexos. Com improvisações baseadas em relatos reais de moradores da cidade, o espetáculo revela as tensões sociais e econômicas que permeiam o cotidiano, reafirmando o teatro como espaço de resistência e transformação.
Um Grito Parado no Ar. Texto original: Gianfrancesco Guarnieri. Direção: Rogério Tarifa. Dramaturgia: Jonathan Silva, Rogério Tarifa e Teatro do Osso. Elenco: Guilherme Carrasco, Isadora Títto, Maria Loverra, Oswaldo Ribeiro Acalêo e Rubens Consulini. Atriz convidada: Dulce Muniz. Duração: 150 min. Classificação: 14 anos.
Sesc Bom Retiro. Alameda Nothmann, 185 – Campos Elíseos, São Paulo. De 17/01 a 16/02. Ingressos: entre R$ 18 a R$ 60. sesc.org.br
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LIVROS
Lembre-se: para criticar, é necessário conhecer
Em tempos de grande polarização política e de uma nova ascensão da extrema-direita pelo mundo, especialmente com o retorno do republicano Donald Trump à presidência dos EUA, na segunda-feira, 20, novos espantalhos se criam a respeito de um suposto “fantasma do comunismo”, que há quase 200 anos rondava a Europa, como diziam Marx e Engels no panfleto “O Manifesto do Partido Comunista”, em 1848.
É natural que em períodos assim, de maior efervescência política, uma espécie de “resistência” (especialmente intelectual) à esquerda também ganhe certa força, em uma disputa de ideias que é não apenas sadia para o desenvolvimento das sociedades, mas essencial. É nessa esteira que a editora Boitempo, já acostumada a esse tipo de lançamento, lançou recentemente a antologia “O Essencial de Marx e Engels”, que propõe um mergulho de fôlego e amplitude sem precedentes nos principais pontos do projeto teórico dos fundadores do marxismo.
Os três volumes, separados em escritos filosóficos, econômicos e políticos, contam com 16 partes temáticas e 66 extratos diferentes, incluindo obras publicadas, documentos e alguns escritos inacabados que foram anteriormente negligenciados. A obra revela, entre outras coisas, como estão equivocadas as interpretações que retratam Marx e Engels como pensadores eurocêntricos e economicistas, interessados apenas no conflito entre trabalhadores e capital.
Os volumes seguem uma linha cronológica que vai do início da década de 1840 até a morte de Engels, em 1895. Temas como a filosofia pós-hegeliana, a concepção materialista da história, método de pesquisa, trabalho e alienação, crise econômica, socialismo e muitos outros trazem ao público as ideias mais conhecidas e uma faceta pouco explorada da dupla.
A organização, bem como as apresentações de cada volume e as notas explicativas são de Marcello Musto, professor italiano com contribuições decisivas no florescente campo de estudo marxiano contemporâneo. A obra conta também com prefácio do professor José Paulo Netto e textos de apoio de alguns dos maiores especialistas brasileiros: Marilena Chaui, Jorge Grespan, Leda Paulani, Virgínia Fontes, Lincoln Secco e Alfredo Saad Filho. A edição é de Pedro Davoglio.
A antologia traz ainda cartas, manuscritos e rascunhos pouco ou nada conhecidos do público brasileiro, que permitem compreender o itinerário e o desenvolvimento do seu pensamento ao longo dos anos.
Box: O Essencial de Marx e Engels, de Karl Marx e Friedrich Engels
Tradução: Nélio Schneider e outros
Boitempo
1.008 págs.
R$ 293 (físico)
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Outro box de respeito, dessa vez de “O Capital”, de Karl Marx
Quem também acaba de lançar um box de cair o queixo é a Civilização Brasileira, com os três volumes de “O Capital”, a obra máxima de Karl Marx, em tradução pioneira do alemão pelo economista Reginaldo Sant’Anna.
A caixa também traz um livreto com material de suporte desenvolvido pela socióloga e economista política Sabrina Fernandes, que discorre sobre a importância de cada volume, além de traduções inéditas feitas por ela da biografia de Marx escrita por Friedrich Engels e da de Engels escrita por Vladimir Lênin. Também são publicadas reproduções históricas de folha de rosto das primeiras edições de “O Capital”, cronologia e bibliografia de apoio.
No Livro 1: O processo de produção do capital, Marx apresenta conceitos-chave — como o surgimento do capital, valor de uso e valor de troca, fetichismo da mercadoria e mais-valia —, a formação da sociedade de classes e a relação antagônica entre a classe trabalhadora e burguesa, além das dinâmicas de exploração do trabalho.
No Livro 2: O processo de circulação do capital, o autor expõe o modo integrado de circulação da mercadoria, apresenta conceitos-chave — como capital-dinheiro, capital-mercadoria, capital produtivo e capital industrial — e delimita as situações de crise no sistema de capital, não como exceção, mas como um destino irrefreável.
No Livro 3: O processo global da produção capitalista, Marx discute a taxa de lucro e seu impacto em diferentes países — o que implica uma crítica do capital diante das relações comerciais entre metrópoles e colônias —, além de reafirmar a situação-limite da acumulação de capital e sua vocação ao colapso.
O texto de orelha é de Carlos Nelson Coutinho e o design é assinado pelo artista gráfico Gustavo Piqueira.
Box: O Capital – Crítica da Economia Política, de Karl Marx
Tradução: Reginaldo Sant’Anna
Civilização Brasileira
2.520 págs.
R$ 359,90 (físico) / R$ 199,90 (e-book)