O arqueólogo galês Jeremy Dronfield, premiado autor de não ficção de 54 anos, não conheceu pessoalmente os dois protagonistas de seu livro mais recente, agora lançado no Brasil, “O garoto que seguiu o pai para Auschwitz” (Companhia das Letras, 354 páginas). Mas isso não impediu que o caso real retornasse à vida e arrebatasse milhares de leitores. A obra narra a história de como pai e filho, Gustav (1891-1976) e Fritz Kleinmann (1924-2009) se mantiveram juntos por mais de cinco anos, de 1939 a 1945, em diversos campos de concentração, culminando com o maior e mais mortífero: Auschwitz-Birkenau, no sul da Polônia. Lá, foram libertados pelas tropas americanas. Fritz publicou memórias e Gustav manteve um diário entre outubro de 1939 e julho de 1945. Ambas os textos passaram despercebidos, talvez por deficiência literária. Somadas aos relatos de sobreviventes, ajudaram Dronfield construir uma narrativa poderosa, dentro daquela que resultou em uma subcorrente da literatura do Holocausto: o gênero Auschwitz, que há mais de 70 anos rende lançamentos de sucesso. Ainda mais na última década.

Família: Gustav e Tini Kleinmann e os filhos Fritz, Edith, Herta e Kurt, em Viena, 1938: ano da anexação da Áustria ao Terceiro Reich, quando se dispersaram (Crédito:Divulgação)

“Há muitas histórias contadas sobre Auschwitz, mas a de Gustav e Fritz se sobressai”, diz Dronfield à ISTOÉ. “Os dois participaram de toda a história dos campos de concentração nazistas. Além disso, deixaram textos que hoje constituem documentos preciosos.”

Acima de tudo, segundo Dronfield, a união de pai e filho constituiu a força para que atravessassem o inferno. “O amor deles era um elo indissolúvel. É a explicação para terem resistido a violências, humilhações e ameaças”, afirma.

Se era para morrer, que fossem juntos. Esta foi a decisão que tomaram, quando a perseguição aos judeus em Viena se mostrou irremediável depois da anexação da Áustria à Alemanha, em 12 de março de 1938. Milhões de indesejados do Terceiro Reich foram transportados para os campos de concentração. Não se tratava só de exterminar judeus, como também opositores políticos, eslavos, homossexuais e deficientes físicos, entre outros.

Lei do silêncio

Pai e filho: o menino Fritz (em 1937) era tão afeiçoado ao pai, Gustav que o acompanhou a Auschwitz. Após a Guerra (foto de 1959), lançaram diários e livros (Crédito:Divulgação e Peter Kleinmann)

A família Kleinmann levava uma vida pacata, sustentada pela estofaria do pai. Seus seis integrantes — duas moças, dois meninos e o casal — dispersaram-se para evitar a execução sumária. O mais novo, Kurt, emigrou com a irmã mais velha para a Inglaterra e depois para os Estados Unidos. A mãe e uma filha mais nova fugiram, mas foram mortas no campo de Minsk. Gustav, de 53 anos, foi detido com Fritz, de 14. Transportados para o campo de Mauthausen, próximo a Linz, insistiram em ficar juntos, apesar da ordem de separação. O laço familiar se revelou tão intenso que conseguiram ser arrastados juntos rumo a novos campos de extermínio, cada um mais brutal que outro.

Quando, em 1942, chegaram ao mais temível, Auschwitz-Birkenau, já tinham adquirido estratégias para driblar os carcereiros. A regra de sobrevivência corrente nos barracões de prisioneiros era uma só: “Nunca chame a atenção”. Quanto menos notado, menor a chance de ser alvo do fuzilamento no Muro Negro. Mas muitos prisioneiros que tentavam se esconder acabavam executados. Foi então que pai e filho aprenderam que, além da invisibilidade, precisavam adotar outro expediente: colaborar. Ao atingir a maioridade, Fritz se voluntariou como ajudante de pedreiro, e foi acomodado no alojamento do pai, que sofria de problemas de coluna. Os dois dormiam na mesma cama de beliche quando foram libertados. Seu legado foi decifrar os dispositivos de resistência eficazes em ambientes altamente hostis.

Somente em Auschwitz, morreram cerca de 1,3 milhão de pessoas. O matadouro se converteu também em um celeiro de lembranças, que resultaram em livros e fizeram conhecidos personagens inesquecíveis por sua humanidade e vontade de viver. Os relatos colaboram até hoje para manter viva a memória de um dos momentos mais bárbaros da História. Por ironia, Auschwitz figura atualmente como uma atração turística popular na Europa. Seus trilhos, barracões, paredões e câmaras de gás recebem a média anual de 400 mil turistas.


ENTREVISTA

“O Holocausto pode voltar”

Jeremy Dronfield, escritor (Crédito:Divulgação)

Por que a escolha dessa história, entre tantas sobre o tema popular de Auschwitz?
A história de Gustav e Fritz é única. A maior parte das narrativas populares do Holocausto provém de sobreviventes que o experimentaram no seu estágio final, como Primo Levi e Elie Wiesel, pelo simples motivo que quase todos os judeus sugados pela maquinaria nazista no início da Segunda Guerra não sobreviveram. Restaram apenas 25 ao final da guerra. Por isso, é incrível que um pai e um filho tenham permanecido juntos e sobrevivido a cinco anos de abuso e violência inimagináveis. Além de tudo, deixaram registros escritos absolutamente únicos de sua experiência.

Você acha possível o retorno de campos de concentração na Europa?
Sem dúvida. O primeiro campo nazista, Dachau, foi criado em 1933, em uma fábrica abandonada perto de Munique. Foi usado para prender gente que era vista como ameaça para o estado nazistas — a maior parte socialistas, comunistas, sindicalistas e demais oponentes políticos de Hitler. Alguns eram judeus, mas somente depois de 1937 e 1938 os nazistas começaram a prendê-los em larga escala, por motivos raciais. Se um novo holocausto surgir — se o permitirmos —, vai começar de
maneira semelhante.

Que lição a experiência do Holocausto deixa para a humanidade do século XXI?
Eu me assusto ao constatar que a extrema-direita está ressurgindo em todo o planeta. O estado de espírito e a intolerância são os mesmos, e a retórica é idêntica à dos anos 1930. O Holocausto não é um evento isolado. Algo parecido pode voltar.