A advogada Lea Beraldo, minha amiga no Facebook, teve outro dia a feliz ideia de postar em sua página as primeiras linhas de uma obra prima do nosso modernismo literário: o romance Macunaíma, de Mário de Andrade, obra de 1928.

O trecho inicial de Macunaíma é uma evidente paródia à introdução de Iracema, de José de Alencar, publicado em 1865, também uma obra-prima, mas de outra época e outro espírito literário: o romantismo indianista. Corri à estante, peguei meu exemplar de Iracema e me pus a reler sua famosa abertura. Foi aí, em poucos minutos, que me veio a ideia desse artigo: compor um trecho análogo àqueles dois, vasado, porém, numa linguagem mais atual e rente à realidade cotidiana que hoje nos aprisiona e sufoca. Coloquei os três na ordem cronológica e, à falta de algo melhor, dei ao conjunto o seguinte título: “três introitos para violino, cordas e desespero”.

JOSÉ DE ALENCAR,
Iracema, 1865:

“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no bosque como seu hálito perfumado”.

MÁRIO DE ANDRADE,
Macunaíma, 1928:

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do [rio] Uraricoera, que a índia Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.”

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BOLÍVAR LAMOUNIER, 2018, um apontamento sobre o Brasil de 2018:

“Além, muito além do fim do Leblon, na favela da Rocinha, nasceu Maria Zélia, uma pretinha encantadora, de dentes muito alvos e um sorriso que fazia sorrir toda a natureza à sua volta. Aos sete anos, não pensava no futuro, muito menos em marido ou filhos. O que adorava fazer era ouvir o canto dos sabiás no acasalamento, ou passar horas olhando lá para baixo, para bem longe, até onde a vista alcançava, sem uma consciência exata do privilégio que era ter a Cidade Maravilhosa a seus pés. Morreu durante uma guerra de quadrilhas, com o crânio trespassado por uma bala perdida”.

Além, muito além do fim do Leblon, na favela da Rocinha, nasceu Maria Zélia, uma pretinha encantadora, que fazia sorrir toda
a natureza à sua volta

 


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