Jair Bolsonaro foi eleito apoiado em duas promessas: defender a Lava Jato e implantar reformais liberais. A primeira caiu por terra com a demissão de Sergio Moro e o estrangulamento das operações de combate à corrupção, desmanche impulsionado por ele. O segundo pilar do seu governo ruiu no dia 19, quando anunciou a demissão do presidente da Petrobras para restabelecer o controle de preços e o populismo econômico. Não se trata apenas da volta às velhas práticas que tanto custaram à sociedade. O presidente quer o retorno aos tempos da ditadura. Como um caudilho, avança para controlar o País atropelando leis, interferindo no Congresso, dobrando a Justiça e driblando os órgãos de controle. Acha, como o rei Luis XIV, que é dono do Estado. “Se tudo dependesse de mim, o regime não seria este”, disse com espantosa sinceridade em uma cerimônia para cadetes do Exército, um dia depois de anunciar na prática o enterro da agenda liberal de Paulo Guedes.

Controle do estado

A mão pesada do presidente não tem paralelo nem no regime de exceção. Ele já tentou interferir na Polícia Federal, o que levou à abertura de um inquérito no STF. No mesmo episódio, tratou a Advocacia Geral da União como uma banca privada para defender seus interesses. Usou a Abin para produzir relatórios defendendo Flávio Bolsonaro no caso Queiroz. O Ministério da Justiça foi desvirtuado para obter um habeas corpus a um ministro extremista investigado por ataques ao STF. No Inpe, o mandatário exigiu a demissão do seu presidente, um cientista renomado, porque estava insatisfeito com os dados alarmantes de aumento de queimadas. Substituiu funcionários da Receita Federal quando apurações se aproximavam da sua família. Gabou-se de “implodir” o Inmetro porque taxistas reclamavam dos tacógrafos. E a reclamação de caminhoneiros foi o pretexto para a degola do bem-sucedido dirigente da maior estatal do País. É bom lembrar que a esperada Reforma Administrativa já foi desvirtuada para proteger os servidores públicos e a Reforma da Previdência foi desidratada para beneficiar os militares. Não se trata apenas de uma gestão movida pelo pequeno varejo dos interesses paroquiais. É um projeto autoritário que ignora as instituições, insinua o uso da força e submete o País aos desígnios particulares e escusos do mandatário. “Boa tarde, Venezuela”, tuitou o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco. A ironia é certeira. A base da ditadura sangrenta implantada por Hugo Chávez foi exatamente o aparelhamento militar e espoliação econômica da gigante petroleira venezuelana PDVSA, hoje em ruínas. Oferecer benesses financeiras irreais para tutelar a sociedade sempre foi um ideal populista que uniu esquerda e direita na América Latina. Bolsonaro repete Dilma.

A intervenção na Petrobras também passou por cima da lei. Atropelou a lei das SA, o estatuto da empresa e as normas da CVM. O presidente anunciou a demissão pelas redes sociais, ignorando a regra que obriga a publicação de fatos relevantes de empresas listadas em Bolsa fora do horário de negociação das ações. Várias ações judiciais podem se seguir à ingerência. Os minoritários podem alegar prejuízos com a medida intempestiva, que fez despencar o valor de mercado da petroleira. Escritórios preparam ações coletivas contra a companhia nos EUA. Em carta à CVM e aos conselheiros da companhia, o senador Tasso Jereissati alertou que a medida feriu a Lei das Estatais, uma norma aprovada em 2016 exatamente para conter a interferência política desastrosa nas estatais.

Mais uma vez, o presidente ignorou o interesse estratégico nacional e praticou o que sempre defendeu em quase 30 anos como parlamentar: o clientelismo e os privilégios corporativos. Desta vez, para agradar os caminhoneiros, grupo que ele já apoiou irresponsavelmente na greve que paralisou o País por vários dias durante o governo Temer. Era um objetivo antigo. Desde 2019, o mandatário vinha pressionando pessoalmente a Petrobras a baixar os preços do diesel. No início deste ano, com novos aumentos dos combustíveis para manter a paridade internacional dos preços, o incômodo aumentou. Os caminhoneiros ameaçaram fazer nova greve. Após viajar no Carnaval com um representante da categoria, Emílio Dalçoquio, o presidente agiu. Defenestrou o presidente da estatal, Roberto Castello Branco, que não é um executivo qualquer. Trata-se de um dos formuladores do seu programa de governo, além de aliado pessoal de Paulo Guedes. Os dois são egressos da Escola de Chicago, meca do liberalismo econômico que, até o momento, inspirou a atual administração. Para a ocupar a presidência da Petrobras, o mandatário escolheu o general Joaquim Silva e Luna, atual presidente de Itaipu, que priorizou em sua gestão o uso assistencial e político da hidrelétrica, em detrimento da lógica empresarial.

ENCENAÇÃO Um dos maiores opositores da privatização da Eletrobras, o senador Rodrigo Pacheco (esq.) recebe MP de desestatização de Bolsonaro (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O lucro da Petrobras

A ação aborta um plano de reestruturação da petroleira que até o momento vinha trazendo bons resultados. Castello Branco cortou custos, diminuiu o número de terceirizados e fez uma bem-sucedida capitalização da BR Distribuidora que, na prática, a privatizou. Fez um acordo com o Cade para quebrar o monopólio no transporte e distribuição de gás natural. Tinha estruturado a privatização da maior parte das refinarias, eliminando mais um oligopólio. Desfez-se de campos terrestres menos lucrativos, o que fomentou pelo País a indústria do óleo para pequenas e médias e empresas. Mais do que isso, tinha reorientado estrategicamente a petroleira para focar na exploração e produção do pré-sal, o que garantiria mais lucros e diminuiria o gigantesco endividamento em moeda estrangeira, um dos maiores do mundo no segmento. Os resultados foram vistosos. Castello Branco conseguiu em 2019 entregar o maior lucro da história da empresa. Em 2020, em plena pandemia, a companhia teve um resultado positivo de R$ 7,1 bilhões. Depois do anúncio da demissão, a estatal divulgou o lucro no último trimestre do ano passado: R$ 59,9 bilhões. Foi um resultado muito positivo, além do que se inesperava. Essa trajetória agora está ameaçada.

Investimentos nessa área são de longa maturação e os investidores já não confiam que a manipulação rasteira tenha sido contida numa empresa que já virou símbolo internacional de corrupção e uso político.

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IRRESPONSABILIDADE Em maio de 2018, caminhoneiros paralisaram o País. Aliado deles, Jair Bolsonaro defendeu o movimento (Crédito:Marcelo Regua)

A ingerência de Bolsonaro era previsível. Com a popularidade em queda e o plano de reeleição em risco, ele busca aprofundar seu populismo econômico. Um dia depois de mexer na Petrobras, disse que vai “meter o dedo na energia elétrica”. Ou seja, manipular o setor para diminuir a conta de luz, algo que Dilma Rousseff já tinha feito com resultados desastrosos (até hoje o consumidor paga pelos prejuízos). Agora, a ideia inicial é usar R$ 70 bilhões de um fundo setorial e diminuir tributos federais para reduzir as tarifas. O presidente também anunciou que o PIS e o Cofins sobre o diesel vai ser zerado por dois meses, sem indicar como serão recuperados os R$ 3,3 bilhões a serem subtraídos do Orçamento. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, o governo precisará compensar esse montante com impostos, um problema que será transferido ao ministro da Economia. A tentação será driblar essa regra. Na prática, como se vê nas negociações para renovar o auxílio emergencial, o teto de gastos também deve ser flexibilizado. Como aconteceu nos anos petistas, o controle artificial de preços deve trazer benefícios apenas aparentes e de curto prazo (como era previsível, Bolsonaro nega que vá interferir na política de preços, contra todas as evidências). No final, o custo do populismo será pago pela sociedade.

Estelionato eleitoral

Ao anunciar a mudança de rota na economia— na prática, um estelionato eleitoral —, o presidente achou que conseguiria ganhar pontos com a população e sua base da apoio. Chegou a criticar Castello Branco (que tem mais de 60 anos) por gerir na pandemia em regime de home office: “Está há 11 meses em casa, sem trabalhar”, fuzilou. Também disse com ironia que ele “estava cansado”. Alegou que “faltava transparência” à companhia e insinuou que ela atendia apenas a “alguns grupos”. Mas não contava com a tempestade que se abateu sobre a economia. As ações despencaram e a Petrobras perdeu mais de R$ 100 bilhões em valor de mercado. A turbulência atingiu todos os setores. Os papéis das principais estatais caíram. O risco-país subiu, assim como o dólar. Investidores e empresas passaram a contar com a expectativa de alta da inflação e dos juros. O risco-país, que mede o grau de confiança no País, subiu. Ao derrubar um dos pilares do seu governo, Bolsonaro deixou claro aquilo que já se previa desde que ele se apresentou como presidenciável: sua conversão ao liberalismo sempre foi um engodo.

Ingerência ameaça plano de reestruturação do setor de energia no País

Ao cair a fantasia da sua conversão ao livre mercado, Bolsonaro enfrentou uma reação que não esperava, inclusive com repercussão internacional. A saída de Paulo Guedes, que ficou calado no episódio e sumiu dos holofotes, virou uma possibilidade cada vez mais concreta. Para tentar conter a crise, a equipe econômica ressuscitou o projeto de privatização da Eletrobras, que sempre esteve na gaveta. O mandatário entregou pessoalmente no Congresso uma Medida Provisória que dá o pontapé inicial para o BNDES preparar o projeto de capitalização da holding de energia, com diminuição da participação estatal — uma espécie de privatização, que traria mais dinheiro para o caixa da companhia, e não para o Tesouro. Não passou de um jogo de cena. Acuado e visivelmente nervoso, o presidente disse: “Queremos enxugar o Estado”. A encenação não deve trazer resultados concretos. A Eletrobras é uma fonte valiosa de cargos, contratos e benefícios políticos em várias regiões. Por isso, parlamentares sempre resistiram à desestatização — especialmente os do Centrão, que agora jogam no time do governo. Um dos maiores inimigos da transferência de controle da Eletrobras é justamente Rodrigo Pacheco, aliado do Planalto e recém-eleito presidente do Senado. Suas manifestações contra a privatização levaram à renúncia recente do presidente da estatal, Wilson Ferreira Junior, que durante mais de quatro anos tentou viabilizar a operação sem sucesso. Da mesma forma, o governo enviou de forma improvisada ao Legislativo um projeto de privatização dos Correios. De difícil execução e questionada até por especialistas, essa operação tinha sido engavetada pelo atual governo. Ao contrário, Bolsonaro aparelhou a estatal com militares que se opunham abertamente ao processo. O próprio Programa de Parcerias de Investimento (PPI), que tem a competência de organizar as privatizações, deve deixar o guarda-chuva do Ministério da Economia e voltar para o comando de Onyx Lorenzoni, que acaba de tomar posse como ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência.

O governo mobilizou todas as forças para tentar conter a maré negativa. O chefe da Secom, Fabio Wajngarten, tuitou que a mudança na Petrobras era “um ato administrativo corriqueiro” e o mercado absorveria a troca “com tranquilidade”. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que participou da cerimônia improvisada da MP de privatização da Eletrobras, qualificou o caos nos mercados como “bolha histérica”. O ministro-sanfoneiro do Turismo, Gilson Machado, disse que se tivesse dinheiro disponível “investiria na compra de ações da petrolífera”. Ao reagir ao furacão de más notícias, o presidente também deu sinais de que não vai oferecer soluções para as reformas que poderiam destravar a economia. Tentou repassar para os governadores a responsabilidade pelo alto custo dos combustíveis, já que o ICMS, estadual, é o principal tributo que incide sobre eles. É um indicativo de que a reforma tributária não deve prosperar. A mudança nos impostos representa uma repactuação de responsabilidade entre os entes federativos. Ao mexer na receita deles, deve-se apontar soluções para seus problemas de caixa, estabelecer regras de transição claras e indicar a perspectiva de ganhos futuros. É o contrário do que Bolsonaro pratica. Desde o início da gestão, ele ignora suas responsabilidades e tenta transferir o ônus político aos adversários, sempre. Não há transformação estrutural possível com essa política provinciana.

A confiança na economia é vital para a retomada dos negócios, mas o cenário sob Bolsonaro não inspira otimismo. Os principais nomes da equipe econômica já pediram as contas ou foram demitidos. O ex-secretário de Desburocratização, Paulo Uebel, disse que a intervenção na Petrobras é uma “traição ao voto dos eleitores”. O antigo secretário de Desestatização, Salim Mattar, disse que ‘Guedes não percebeu que foi vencido’. Os próximos que podem abandonar o navio são André Brandão, presidente do Banco do Brasil, Waldery Rodrigues, Secretário de Fazenda, George Soares, secretário de Orçamento Federal, e Carlos da Costa, Secretário de Produtividade, Emprego e Competitividade. Todos já foram criticados publicamente por Bolsonaro, que afirmou orgulhosamente: “Mudança comigo não é de bagrinho, é de tubarão”. “Paulo Guedes e equipe terão uma vida cada vez mais dura. Não há mais jogo de xadrez. É um cabo de guerra declarado”, diz Gilberto Braga, economista do Ibmec. O resultado está aí. O custo Bolsonaro arruina a credibilidade do País e desfaz a perspectiva de atração de investimentos, além de ameaçar a reversão do rombo fiscal, que causa desconfiança crescente entre os credores. “A lenta descida do Brasil ao inferno deve continuar”, resumiu o colunista Michael Sttot, do “Financial Times”. Não é surpresa. Movido pelas eleições de 2022 e pela perpetuação no poder, o mandatário não hesita em envergar a economia e as instituições. Nunca mostrou se preocupar com elas, afinal.
* Colaborou Guilherme Henrique


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