Único sul-americano a integrar o corpo docente da Singularity University, a inovadora escola criada em parceria pela NASA e o Google, o porto-alegrense Tiago Mattos, de 37 anos, é também responsável pelo curso de Futurismo do Programa de Inovação Transdisciplinar da Universidade Hebraica de Jerusalém, onde os alunos aprendem com nada menos que 14 vencedores do Prêmio Nobel. Ele é também o idealizador e um dos palestrantes do Friends of Tomorrow, conferência que trará ao Brasil em 5 de agosto uma dezena de autoridades em tecnologias emergentes — caso da astronauta Yvonne Cagle e de Edgard Morya, diretor de pesquisa do Instituto Internacional de Neurociência. Na entrevista a seguir, Tiago afirma que a inteligência artificial já supera a humana em alguns aspectos, analisa os impactos da automação do trabalho e diz que o mundo será melhor se usarmos a tecnologia para criar empatia.

A inteligência artificial já supera a humana?

Eu não tenho nenhuma dúvida de que a inteligência artificial irá ultrapassar a humana completamente. Mas isso não ocorrerá tão cedo. O que temos até o momento são alguns ambientes em que ela entrega resultados de forma mais rápida e mais efetiva que nosso cérebro orgânico.

 

Por exemplo…

Os veículos autônomos. Eles já contam com algoritmos que permitem aprender a partir das influências externas do trajeto tendo como principal ferramenta a visão computacional, pela qual o computador enxerga o mundo exterior e toma decisões sobre a condução do automóvel. Esses sistemas dirigem melhor que os seres humanos, conseguem prever e evitar colisões antes que elas ocorram. Outro exemplo: atendimento de telemarketing. É uma atividade intelectual criativa, que se dá a partir de um roteiro, o que nada mais é do que uma “árvore de decisão”. Para fazer isso existem os chatbots (programas de atendimento virtual que simulam as reações de uma pessoa durante uma conversa). A partir da computação cognitiva, esses programas conseguem indicar as soluções de forma mais rápida e melhor que um ser humano. Eu poderia citar outros exemplos, mas de forma alguma eles permitem afirmar que a inteligência artificial, como um todo, já superou a humana.

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Décadas atrás, computadores eram colocados à prova em disputas com campeões de xadrez. Essa comparação “homem versus máquina” faz algum sentido?

O Google tem uma divisão chamada DeepMind (“Mente Profunda”, em tradução livre), da qual faz parte o projeto AlphaGo, criado especificamente para disputar partidas do jogo Go, muito mais complexo que o xadrez em termos de possibilidades. Em 2016, pela primeira vez, o AlphaGo conseguiu vencer um jogador profissional, o campeão europeu. Recentemente, venceu também o primeiro colocado no ranking mundial (o chinês Ke Jie), em uma disputa de três partidas. Nessa tarefa a inteligência artificial também já ultrapassou a humana.

Com a inteligência artificial, a humanidade, como a conhecemos, poderá dar lugar a uma nova espécie?

Em algum momento do passado, uma determinada forma de vida marinha era a espécie mais evoluída do planeta. Depois vieram répteis, aves, mamíferos, primatas. Hoje, o Homo sapiens sapiens é a forma mais evoluída. Por que a evolução acabaria na gente? É muita pretensão acreditar que somos o final dessa história. O que me parece lógico é que tenhamos uma evolução que poderá incorporar a biotecnologia, a nanotecnologia e a inteligência artificial. Nós já somos psicologicamente dependentes desse supercomputador que é o telefone celular. Se daqui a pouco ele vai estar implantado ou conectado de alguma forma ao cérebro humano, por que não considerar isso uma evolução da espécie?

 

A humanidade não corre o risco de ser dominada por robôs?

Eu não vejo um futuro do tipo “nós contra eles” e sim uma possibilidade de unir o melhor dos dois mundos. Me parece que temos mais a ganhar do que a perder com esse cenário. Devemos entender que o nosso cérebro orgânico poderá ganhar uma nova camada de inteligência, um “neo neocórtex” (neocórtex é a estrutura responsável por habilidades como a memória e a linguagem), que irá extrapolar a capacidade cognitiva que temos hoje e criar uma inteligência “trans-humana”. A inteligência artificial ajudará a resolver problemas para os quais hoje não temos resposta.

 

De que forma?


Uma área que tem me fascinado é aplicação na saúde. A inteligência artificial poderá identificar eventuas doenças por meio de exames de imagem que hoje os médicos demoram muito tempo para analisar e nem sempre são capazes de chegar a um diagnóstico preciso. Além de avaliar as informações com maior velocidade, a inteligência artificial pode cruzá-las a partir da varredura do DNA do paciente e da consulta a bancos de dados sobre o material genético de milhões de pessoas, além de poder consultar aquilo que é registrado por aplicativos de celular e de outros dispositivos “vestíveis” que geram informações sobre saúde: hábitos alimentares, rotinas de atividades físicas, qualidade do sono, pressão arterial. Isso tudo combinado vai gerar um “eugoritmo”, um algoritmo pessoal que indica como cada um deve se alimentar, se exercitar e dormir para ter uma vida mais saudável, plena e feliz.

 

O Brasil tem algum papel relevante nessa área?

Sim. Eu destaco o Instituto Internacional de Neurociência de Natal, que tem o endosso do Miguel Nicolelis, maior autoridade em interação cérebro-máquina que a gente conhece. Apesar de o trabalho do Instituto não ser tão associado diretamente à inteligência artificial, os resultados de suas pesquisas permitirão a outros cientistas evoluir dentro desse campo.

 

Como funciona na prática essa conexão entre o cérebro humano e computadores?

Já existe um equipamento chamado “mindset”, um tipo de fone de ouvido que gera um eletroencefalograma. Ele monitora a atividade cerebral em busca de padrões e informa qual o melhor horário para aquela pessoa trabalhar, porque naquele momento ela é mais produtiva, além de emitir alertas sobre os instantes em que ela se desconcentrou ou quando precisa dar um tempo para relaxar. Pesquisadores da Universidade da Califórnia criaram uma tecnologia que capta ondas cerebrais para substituir os retratos falados. Em vez de descrever, usando a memória, a imagem de uma pessoa envolvida em um crime para que um artista desenhe aquele retrato e depois a gente confirme o quanto ele se parece com o suspeito, hoje é possível apenas relembrar a cena para que essa máquina ligada à cabeça consiga extrair uma imagem muito semelhante à real. Isso mostra que é possível buscar na mente não só imagens, mas ideias difíceis de serem verbalizadas — e até sonhos. Outra tecnologia já permite enviar estímulos táteis pela internet. Tudo isso nos torna mais sensíveis, mais empáticos e mais humanos, o que de certa forma nos “desrobotiza”.

Isso parece um pouco contraditório…

O que eu vejo de mais interessante nessa tecnologia é que ela permite que sejamos mais empáticos, entendendo de fato os sentimentos do outro. Se o ser humano fosse verdadeiramente empático não teríamos guerras, racismo, homofobia. Uma inteligência que nos permita ser mais empáticos tornará o mundo melhor do que ele é hoje.

 

E quanto ao futuro do trabalho?


Um estudo da Universidade de Oxford sobre qual a chance de as atividades profissionais serem automatizadas nos próximos 20 anos mostra que os índices ainda serão muito baixos. O que parece que irá acontecer rapidamente é que as profissões vão se transformar. O que um médico, um engenheiro ou um jornalista fazem hoje não é o que eles farão amanhã. A profissão vai morrer? Não, mas a atividade profissional vai mudar. Eu tenho um entendimento de que as empresas, como as conhecemos hoje, deixarão de existir nos próximos 20 a 25 anos. Esse formato tradicional, de alta cúpula, gerenciamento médio e força de trabalho já está mudando. Em seu lugar surgem plataformas auxiliadas por algoritmos e divisão de tarefas. A alta cúpula permanece, o gerenciamento é feito por algoritmos e a força de trabalho fica fora da empresa. É o que o ocorre com Cabify e Airbnb, por exemplo. O pedido do cliente é gerenciado por um algoritmo que o distribui para dezenas de prestadores, “freelancers” que se conectam à organização por trabalho requisitado. Os trabalhadores prestam serviços para várias empresas. Nesse conceito, todos seremos operadores de uma virtualidade.

 

As pessoas terão trabalho ou será tudo automatizado?

Faremos várias coisas, de acordo com nossas habilidades, desejos momentâneos e demandas de mercado. Isso me leva a crer que a maior parte das universidades e programas de treinamento estão preparando jovens para um mundo do trabalho que não existirá. A maioria das pessoas já está automatizada. Elas trabalham mais de oito horas por dia em atividades que odeiam, sob uma pressão nada saudável vinda de chefes que não admiram, em empresas sem propósito. Tudo isso para ganhar um dinheiro que não vale a pena, com o objetivo de comprar coisas desnecessárias e assim parecer mais interessantes do realmente que são. O problema é a automação ou somos nós?

 

O que é o pensamento “pós-digital”?

Na história da humanidade houve três grandes revoluções: a agrícola, a industrial e a digital, que deu origem ao que alguns chamam de era da informação ou era digital. O pensamento pós-digital é a revolução que sucede à era da informação. Já existe até uma sigla para isso: GNR, ou genética, nanotecnologia e robótica, que inclui a inteligência artificial. A genética traz a capacidade de reprogramar a biologia, fazer um “upgrade” nos organismos vivos. A nanotecnologia permite manipular a matéria e criar máquinas em escala microscópica, como pequenos aparelhos que podem ser injetados no nosso corpo para que a gente tenha mais saúde. A robótica e a inteligência artificial provavelmente trarão olhares mais sofisticados para o que hoje não entendemos.

 

Você se refere a questões existenciais ou práticas?

Tanto a indagações filosóficas (qual o sentido da vida?) como por exemplo compreender de fato a relação espaço-tempo proposta por Einstein. Ainda temos muita dificuldade em perceber o tempo de forma não linear.

 

 


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