Com seu rock alternativo contagiante, o Hoodoo Gurus saiu das praias da Austrália para conquistar o mundo nas décadas de 1980 e 1990. Seu pop conquistou principalmente os surfistas da época, e sucessos como “Come Anytime” e “1000 Miles Away” foram muito populares no Brasil. Agora, 40 anos após sua formação, o Hoodoo Gurus lança seu 10º álbum de estúdio, ‘Chariot of The Gods’. O disco é o primeiro em 12 anos e consegue uma proeza: manter a identidade dos músicos, com a sonoridade que tornou a banda famosa e letras reflexivas sobre temas presentes na nossa sociedade.

Em entrevista à ISTOÉ, o vocalista e compositor Dave Faulkner falou sobre o novo álbum e desabafou sobre a importância de suas composições, que muitas vezes são mal-interpretadas – mencionando até mesmo uma queridinha dos brasileiros.

‘Chariot of The Gods’, seu primeiro álbum em 10 anos, foi feito durante a pandemia. Foi revigorante fazer um novo álbum longe dos olhos do público?

Dave Faulkner: As pessoas realmente têm me perguntado como a pandemia afetou o processo desse álbum. A gente o fez de uma forma que o faríamos normalmente, mas demorou um pouco mais, porque tivemos que parar algumas vezes durante o lockdown e não nos encontrarmos por meses. Além disso, o álbum foi muito bom para nós durante a quarentena, porque tínhamos algo para trabalhar e nos inspirar no meio daquele pesadelo de não poder fazer shows. Esse envolvimento foi algo positivo na vida e isso foi bom. Todas as músicas são novas, apenas uma delas era “velha”. A canção “Settle Down” escrevi há 20 anos, e isso é engraçado porque levou muito tempo para eu gravá-la.

E por que você decidiu gravar essa música agora?

Eu sempre gostei dessa música, da melodia e da letra então pensei que era o momento para trazê-la de volta e gravá-la. Mas as outras são completamente novas. Normalmente, as inspirações para cada música vêm em diferentes momentos em muitos anos. Geralmente eu escrevo o riff e gravo no meu celular, daí saio para andar ou fazer exercício e as melodias acabam aparecendo na minha cabeça, então deixo essas inspirações um pouco de lado e penso nas letras só depois. Só escrevo as músicas quando estamos no estúdio e durante a pandemia esse processo foi acontecendo durante as gravações.

Na verdade, as letras foram baseadas em ideias que tive 10 ou 20 anos atrás em histórias sobre assuntos que me preocupam na atualidade, coisas que aconteceram na minha vida ou que acontecem no mundo.  É só uma forma de me expressar sobre política, algumas questões pessoais e histórias de pessoas.

Quais foram as inspirações para as novas músicas ?

Algumas músicas foram escritas baseadas em experiências bem pesadas. “Answered Prayers”, por exemplo, é uma história bem feia sobre relacionamentos abusivos. Eu canto do ponto de vista do abusador, que é tóxico. Não é minha história, mas de alguém que eu conheço bem e também baseada no relacionamento abusivo de outro amigo meu. Percebi a mesma dinâmica nos dois relacionamentos, ambos terríveis. Pude ver a batalha de fazer os parceiros se sentirem sem importância. Muito triste. E as outras músicas são sobre decepções que tive na minha vida recentemente.

Você traz muita consciência através das suas músicas e discute em suas letras muitas questões sobre abusos, política e diversidade e acaba inspirando muitas pessoas. Como se sente em relação a esse papel?

Bom, eu não tento falar pelos outros, falo por mim mesmo e só espero ser honesto e verdadeiro, é a única coisa que eu posso fazer. Por exemplo, a música “Hung Out to Dry” (2020), que também produzimos um vídeo e está disponível no Youtube para assistir, é sobre a minha antipatia ao Donald Trump. Eu não escrevi a música dizendo que não gosto do Trump porque ele é muito ruim ou por causa das coisas que ele fez na economia mundial ou qualquer outra coisa. Não escrevo fatos como jornalista, porque sou um artista.

Mas, escrevi de uma maneira que eu pudesse expressar o quanto eu não gosto dele (risos) e só quero poder dizer isso, por isso eu faço música e nela pude dizer “eu te odeio, você é um idiota’ (risos). Queria cantar algo que parecesse que eu estaria falando com ele.  Então eu poderia escrever uma música dessa maneira que eu estava falando com ele. É por isso que a arte é diferente e é uma forma de expressão.

Já a música “Hang With the Girls”, é sobre identidade de gênero e política sexual. É uma canção baseada em duas pessoas transgênero que se apaixonam e não seguem as expectativas dadas pela sociedade, não pelo fato de serem transgênero, mas apenas por elas serem elas mesmas. Essa é a política que discuto nessa música.

Você também traz em seu trabalho o sentimento básico de empatia.

Sim, obrigado. Às vezes, as pessoas não veem as histórias por trás de cada letra de música. Muitas vezes as melodias são bem alegres e até parece música pop e faz com que as pessoas amem, mas elas não escutam o que estou realmente dizendo. Elas não veem a mensagem tão claramente, mas também às vezes eu escondo alguns significados por detrás de cada letra.

A música “Come Anytime”, muito popular no Brasil, por exemplo, ninguém sabe do que realmente se trata. A mensagem sempre foi muito clara na minha mente e sempre deixei as pessoas tentarem adivinhar. Mas posso te contar agora e espero não decepcionar o público brasileiro.  A letra parece uma história romântica entre duas pessoas apaixonadas em que uma delas faz qualquer coisa pela outra, até mesmo sacrificar seu próprio prazer para fazer a outra feliz.

Na verdade, se você observar bem, a música conta a história de uma profissional do sexo e é completamente oposta a uma história romântica, em que ela diz “vou fazer o que você quiser, é só me dizer”, porém ela cobra por isso.

Eu escrevi essa música para chamar a atenção nesse ponto em que as pessoas também fazem isso nos relacionamentos, não como as profissionais do sexo, mas por amor. Elas também fazem os parceiros felizes se sacrificando. Eu queria apenas explorar nessa canção o paradoxo do amor romântico e o não-romântico, que andam paralelamente juntos. Essa mensagem está lá, mas um pouco escondida.

Já “1000 Miles Away” é uma música que muita gente acha que é sobre pessoas que estão longe de casa, da família ou das pessoas que amam e sentem falta. Quando a escrevi, na verdade, não quis dizer isso. Esse significado pode até existir, mas na verdade, é sobre o sentimento de não ter uma casa para voltar e a necessidade de continuar viajando sem rumo.

Essa não é minha história pessoal, porque na verdade moro na mesma rua desde 1984, não viajo o tempo todo e meu coração está onde está a minha casa. Eu escrevi essa letra de um outro ponto de vista que não é meu, mas o significado também está lá.

E sobre a sua música nova “Was I Supposed to Care”, tem algum significado por trás da letra que não percebemos?

É uma letra mais focada no universo masculino do que feminino. Pode ser para as mulheres também, mas penso no alto índice de suicídio que acontece entre os homens quando um relacionamento afetivo termina.

Os homens comentem suicídio três vezes mais que as mulheres todos os anos. Geralmente, eles têm dificuldade de expressar suas emoções e a única pessoa que eles confiam em compartilhar seus reais sentimentos são suas parceiras. E quando o relacionamento termina, eles não têm mais ninguém para conversar mais e porque não querem dividir com outros amigos homens o que sentem, geralmente vão para um pub beber.

Sei que é difícil evitar esses pensamentos negativos, mas esses sentimentos não podem se voltar contra eles ou contra as parceiras. Por isso fiz essa música para ajudar as pessoas a se expressarem e buscarem ajuda com amigos. Não existe certo ou errado em um relacionamento. Se eu conseguir salvar pelo menos uma vida com essa música eu ficaria bem feliz.

Saúde mental realmente é uma questão muito séria e aqui na Austrália é comum os homens não falarem dos próprios sentimentos, mas precisamos.

Hoje vivemos num mundo completamente diferente e falar sobre saúde mental é completamente importante e relevante e aprender a lidar com as nossas próprias fraquezas.

E os planos para o Brasil?

Tenho muitas boas memórias do Brasil. Já viajamos por Florianópolis, Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades. Estamos tentando voltar para shows em 2023. Queremos muito, temos muitos amigos por lá e amor pelo país. Não vejo a hora de poder ver todo mundo novamente.