Criadora do Tramal, um dos remédios mais populares no Brasil para tratamento de dores, a farmacêutica alemã Grünenthal implementou uma estratégia de marketing agressiva para impulsionar as vendas do produto no mercado brasileiro. Por aqui, aonde o medicamento chegou em 2016, a tática da companhia incluiu o engajamento de médicos como verdadeiros “influenciadores da dor”. Esses profissionais, alguns dos quais dirigentes de associações que estudam o assunto, são usados para levar a outros médicos informações sobre os produtos da Grünenthal — o que ajuda a multiplicar prescrições e ganhos.
A relação entre a farmacêutica alemã e médicos brasileiros está no centro desta reportagem, a segunda da série investigativa “Mundo da dor”, uma colaboração entre jornalistas de mais de dez países, incluindo o PlatôBR e veículos como The Examination, Der Spiegel e Clip, para apurar como empresas de opioides ao redor do mundo lucram enquanto a dependência e as overdoses aumentam.

Venda e prescrição de Tramadol no Brasil
A face mais conhecida do marketing da Grünenthal no Brasil é uma plataforma no site da companhia, a “Falemos de dor”. O espaço virtual acomoda uma série de vídeo-aulas gravadas por médicos para médicos sobre os medicamentos da farmacêutica, relacionando-os a casos clínicos concretos. Entre os profissionais parceiros da Grünenthal, que aparecem em diversas aulas da plataforma da empresa, estão os ortopedistas André Liggieiri e Frederico de Barra Moraes. Liggieri é vice-presidente do Comitê de Dor da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Trauma (Sbot). Moraes foi presidente do grupo.
Para além das vídeo-aulas no site, as relações da dupla com a farmacêutica alemã já foram atestadas de outros modos. Especializados em dor, Liggieiri e Moraes escreveram um texto sobre o uso do Cloridrato de Tapentadol. Comercializado no Brasil como Palexis, o remédio é patenteado pela Grünenthal. No artigo, publicado no Jornal Brasileiro de Dor (Brazilian Journal of Pain — BrJP) em 2023, não há menção ao risco de dependência do medicamento, que é considerado de três a quatro vezes mais forte que o tramadol. Além de Liggieri e Moraes, o artigo também é assinado pelo ortopedista David Sadigursky, outro membro da Sbot. Os três médicos, acertadamente, declararam no artigo conflitos de interesse com a Grünenthal por receberem dinheiro da empresa para participarem de eventos.
Moraes foi ainda “pesquisador em Comitês Consultivos” da Grünenthal. Liggieiri também aparece como speaker em diversos eventos realizados pela Sbot com patrocínio da farmacêutica.

Médicos ligados ao Comitê de Dor da Sbot declararam conflito de interesses com a Grunenthal em artigo
Registros de funcionários da Grünenthal no LinkedIn mostram ainda que a farmacêutica envia documentos científicos sobre seus produtos para médicos, o que pode influenciar na prescrição de opioides por parte dos profissionais. A prática, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), não é irregular, desde que haja “respeito” à independência do médico na escolha da melhor conduta e medicamento para o paciente.
O plano de se associar a profissionais e sociedades médicas especializadas em dor não é uma exclusividade da empresa alemã. Outras companhias do ramo de opiáceos também o fazem, a exemplo da Mundipharma, que produz o Targin e o Oxycontin e teve a atuação detalhada em reportagens anteriores desta investigação.

Perfil no LinkedIn mostra que Grünenthal envia artigos científicos para médicos
Os reflexos da estratégia da Grünenthal em um mercado como o brasileiro, onde o Tramal se popularizou, no entanto, podem ser vistos no Instituto Perdizes, onde funciona o ambulatório de opioides do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
A Sbot se recusou a informar à coluna quanto recebeu de investimento da Grünenthal nos últimos três anos para a realização de aulas, conferências e viagens de seus membros titulares. A postura foi diferente da Sociedade Brasileira de Estudo de Dor (Sbed) que, na primeira reportagem desta série, revelou que recebeu US$ 39 mil da farmacêutica Mundipharma entre 2019 e 2023.
Da prescrição à crise
Após atingir a marca de dezoito comprimidos de cloridrato de tramadol por dia, em 2021, a designer de sobrancelhas mineira Rafaela Silva, de 38 anos, chegou à conclusão de que não estaria viva até o fim daquele ano. A dependência do opioide havia chegado ápice, segundo ela contou à coluna, em uma conversa em fevereiro, em Contagem (MG), onde vive. Os mais de dez comprimidos por dia eram para não sentir os efeitos da abstinência. “Ou iria morrer de overdose ou iria tirar minha vida”. A dependência de tramadol começou após um tratamento de dor crônica iniciado em 2017.
No auge, não se importava mais com efeitos adversos, como náuseas, sonolência e tontura. O sono, inclusive, fazia parte do comportamento de adicção.
“Eu tomava os comprimidos, dormia, e não sentia as dores que sentia, nem a fissura por tomar mais”, disse.
No sistema de efeitos colaterais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), náusea e coceira estão entre os dois principais efeitos ruins do tramadol. Em sétimo lugar no registro de efeitos colaterais do medicamento estão os erros de prescrição do produto, com 57 casos. De acordo com o pesquisador sênior da FioCruz Francisco Inácio Bastos, o Tramal deve ser receitado só pontualmente para pacientes de dor crônica. Jamais de forma contínua.
No caso de Rafael Silva, ocorreu o contrário. A designer relatou que, quando procurou tratamento para fibromialgia, em 2017, a médica que a atendeu receitou o uso contínuo e diário de Tramal e não determinou uma data limite para interrupção do uso. A designer de sobrancelhas preferiu não revelar à coluna o nome da médica.
A profissional também não mencionou à paciente que o medicamento poderia causar dependência. E deu um conselho. “Ela só me disse para não ler a bula. Anos depois, quando eu já estava completamente dependente, eu pesquisei na internet e descobri que o remédio causava dependência”, contou.
A bula do Tramal comercializado pela Grünenthal no Brasil diz que o medicamento tem “um baixo potencial de dependência”, mas que o “uso em longo prazo pode desenvolver tolerância e dependência física e psíquica”. A farmacêutica também indica o uso para dor “moderada a grave”, o que, segundo especialistas, é uma prescrição contestável. “Opioides só deveriam ser usados em caso de dor severa”, apontou o Bastos.
Tramadol no sistema público de saúde
O Tramadol é o medicamento mais comprado pelo Ministério da Saúde para o tratamento de dor no sistema público de saúde. Classificado como “opioide fraco”, assim como a morfina e a codeína, o remédio foi quase duas vezes mais comprado do que a morfina, que é aplicada, por exemplo, em pacientes oncológicos.
O medicamento não é incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, apesar de ser manipulado em unidades públicas de saúde, não é distribuído gratuitamente para pacientes.
Durante toda a sua dependência ativa, Rafaela Silva conseguia a prescrição do Tramadol nas clínicas públicas de Contagem, cidade na região metropolitana de Belo Horizonte onde nasceu e foi criada. A designer de sobrancelhas costumava ir ao posto de saúde sempre que o remédio acabava e, mesmo com os profissionais sabendo de sua dependência, obtinha prescrição de mais opioides. “Eles não sabiam exatamente como me ajudar no vício. Teve uma médica do posto que tentou me auxiliar com um ‘desmame’, uma diminuição na quantidade de comprimidos que eu tomava por dia, mas não adiantou por muito tempo”, disse.

Efeitos adversos do Tramadol registrados no site de farmacovigilância da Anvisa
Segundo ela, pediu ajuda a diversos médicos, públicos e particulares, mas muitos alegaram não saber como ajudá-la. O principal problema, diziam, era como retirar o Tramadol sem afetar as dores da fibromialgia, que eram maiores a cada crise de abstinência. O opioide, quando usado por um longo período, cria resistência no corpo humano, o que, muitas vezes, leva à dependência. Silva, entretanto, afirmou com clareza que sua dependência ia além dos sintomas físicos. Também eram emocionais.
“O efeito acabava mais rápido, eu tinha que tomar mais e mais e mais, porque a dor não passava nem tomando ele. Eu tomava e a dor amenizava, mas não passava. Após o uso, eu me sentia tranquila, e dormia. A dor da fibromialgia é nada perto da dor da abstinência”.
Após recusas sucessivas de médicos em assumir o tratamento de sua condição de dependência e dor crônica — e diante do insucesso dos profissionais que tentaram — Silva pediu, em 2023, para ser internada num Centro de Atenção Psicossocial (Caps). “Eu não via mais saída. Sabia que poderia nunca voltar para a minha família, porque os médicos me falaram que eu ia ficar dopada e que o tratamento era por tempo ‘indeterminado’”, disse. Quando chegou o momento da internação, no entanto, o pai interveio. A família decidiu tomar um empréstimo para pagar um tratamento particular. Está há três anos sóbria.
O que dizem os citados
A Sociedade Brasileira de Ortopedia e Trauma (Sbot) recusou-se a revelar quanto recebeu da Grünenthal nos últimos três anos. Tampouco respondeu se a farmacêutica tem alguma influência no material que é ensinado nos webinars da entidade patrocinados pela empresa. A sociedade também não se manifestou sobre suas lideranças terem parcerias com a Grünenthal. A Sbot enviou a seguinte nota à coluna:
“A Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT) é uma entidade sem fins lucrativos com 90 anos de fundação e tem como prioridades a formação, educação médica continuada e desenvolvimento científico dos seus associados em conformidade com os princípios da ética e da legislação vigente. É por este mesmo princípio que não nos manifestamos sobre condutas de outras instituições ou mesmo de nossos associados, cujas responsabilidades são personalíssimas. Por fim, informamos que todas as nossas atividades científicas, educacionais e institucionais que contam com suporte de parceiros comerciais seguem os princípios internacionais de compliance, com manifestação obrigatória de eventuais conflitos de interesse”.
O médico André Liggieri recebeu os questionamentos da coluna por meio da assessoria da Sbot, mas não se pronunciou pessoalmente. A coluna enviou as perguntas diretamente ao profissional, mas também não houve retorno. O espaço está aberto para manifestações.
O médico Frederico de Barra Moraes, que já prestou uma série de serviços para a Grünenthal, recusou-se a dizer quanto recebeu da farmacêutica nos últimos cinco anos. “Já fiz a minha declaração no Conselho Regional de Medicina de Goiás de todas as empresas para as quais presto consultoria ou faço aulas, seguindo as normas da Anvisa e dos Conselhos de Ética”, disse Moraes.
Ex-presidente do Comitê de Dor da Sbot, o médico também não quis dizer quanto o grupo recebeu da farmacêutica durante a sua gestão.
Questionado sobre a influência da Grünenthal no material das aulas que leciona, Moraes se absteve da pergunta e disse que a farmacêutica deveria ser procurada. Ele também não respondeu por que não citou o risco de dependência, ao escrever o artigo sobre o uso do Tapentadol, publicado em 2023
A coluna questionou a Grünenthal sobre todos os pontos da atuação da farmacêutica citados nesta investigação, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem. O espaço está aberto.