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Não há limites para um grupo de direita autodenominado Pró-vida, que decidiu provocar nesta semana um verdadeiro linchamento dos envolvidos no caso de uma criança de 10 anos que ficou grávida, vítima de estupro, acirrando ainda mais a guerra ideológica no Brasil. Ensandecidos, eles tentaram forçar os médicos a não realizar o aborto legal na menor. É como se a violência sexual contra a criança, que perdeu a mãe, viu o pai indo parar na cadeia e sofreu nas mãos do tio que se aproveitou dela desde os seis anos, já não fosse um sofrimento suficiente. Houve exposição ilegal de informações pessoais da menina, que foi chamada de “assassina” por fazer um aborto determinado pela Justiça. Para completar, os manifestantes antiaborto trataram médicos como “demônios” e “aborteiros”, durante protestos violentos em frente a uma maternidade em Recife (PE), que fez a interrupção da gravidez legalmente. Desrespeitaram às mulheres internadas no local.

REAÇÃO FEMINISTA Grupo de defensores dos direitos das mulheres protestou a favor do aborto legal: direito à escolha (Crédito:Anderson Nascimento)
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA O tio que teria estuprado a menina por quatro anos foi preso no dia 18: confissão informal no caminho (Crédito:Divulgação)

A insanidade que envolveu o caso foi tamanha que, apesar do estupro ter ocorrido no Espírito Santo, a intervenção médica precisou ser feita em Recife, porque os médicos capixabas se recusaram a fazê-la, alegando que não tinham capacidade técnica. Temeram a reação popular. A extremista bolsonarista Sara Giromini, deu uma demonstração ainda maior de descontrole e vazou na internet o nome da menina e o endereço do hospital onde seria feito o procedimento, depois que a ministra Damares Alves enviou assessores para acompanhar o caso. Pelo vazamento de informações, que estão em segredo de Justiça, Sara foi denunciada pelo Ministério Público do Espírito Santo, em Ação Civil Pública que pede indenização de R$ 1,32 milhão. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), arcebispo Walmor de Azevedo, entrou na nau dos insensatos e classificou a interrupção da gravidez da criança como um crime hediondo.

Aborto legal

O médico Olímpio Barbosa de Moraes, que cumpriu a ordem da Justiça e interrompeu a gravidez da menor (ele sofreu ameaça de excomunhão da Igreja), disse que realiza muitos procedimentos semelhantes e que obrigar a continuação dessa gravidez seria uma “tortura ainda maior” para a criança. Diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), ele atende a muitas mulheres vítimas de estupro ou em gestação de risco, que optam pelo aborto, diz que nunca tinha visto nada igual. Quando chegou ao hospital e se deparou com a manifestação que tentava impedir o procedimento, ele afirmou ter sentido muita tristeza por ver as pessoas chamando uma criança violentada de assassina. “Foi um desrespeito com a garota e com as mulheres internadas, muitas em estado de risco, que se assustaram com a invasão do hospital. Várias delas sem máscaras, num ambiente hospitalar em plena pandemia”, espantou-se.

A violência sexual tem roubado a infância de muitas crianças no Brasil. Cerca de 53,8% dos casos de estupros no País são de meninas de até 13 anos. Os dados do Ministério da Saúde e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que muitas meninas sofrem violência dentro de suas próprias casas, e isso piorou com o isolamento social, já que o agressor, em 76% dos casos, é um parente. “A forma como essas meninas são tratadas só traz a mensagem de que ninguém é confiável”, diz a psicóloga Katherine Miranda. E a situação só piora quando grupos radicais decidem transformar uma criança indefesa em criminosa.