Conflitos, mudança climática, migração, abusos sexuais e cibernéticos, casamento infantil, doenças mentais, suicídios: a infância sofre uma violência “sem precedentes”, denuncia a representante especial das Nações Unidas para a violência contra crianças em uma entrevista à AFP.

“O mundo não vai muito bem. Temos muitas crises atualmente”, resume a pediatra marroquina Najat Maalla M’jid, que, no entanto, acredita que este é um “momento crucial para impulsionar a agenda política e garantir que os políticos e os tomadores de decisões a levem isso consideração”.

M’jid, de 65 anos, apresenta nesta quinta-feira (10), em uma reunião da Assembleia Geral da ONU dedicada aos direitos da infância, um relatório devastador, que conclui que a violência sofrida pelos menores no planeta “atingiu níveis sem precedentes”.

“Conflitos, crise climática, insegurança alimentar, enormes deslocamentos de crianças… E há cada vez mais atividades criminosas. Cada vez mais tráfico de pessoas. O crime facilitado pela tecnologia está crescendo”, enumera M’jid, que foi relatora especial da ONU sobre a venda de crianças, prostituição e pornografia infantil entre 2008 e 2014.

“Se a isso somarmos a pandemia da covid, os problemas de saúde mental”, “a situação não é nada maravilhosa”, diz ela nos escritórios desta pequena estrutura da ONU criada há 15 anos, que busca oferecer uma visão global de um problema normalmente tratado de forma setorial pelas diferentes agências da organização.

O panorama traçado por seu relatório não poderia ser mais desolador: mais de 450 milhões de crianças viviam em zonas de conflito no final de 2022; 40% dos 120 milhões de deslocados até o final de abril eram menores de idade; 333 milhões de crianças vivem em extrema pobreza e mais de 1 bilhão está em alto risco de serem afetadas pelas mudanças climáticas, “um multiplicador de riscos”.

Outras facetas da violência infantil incluem o trabalho (160 milhões); o casamento infantil, com cerca de 640 milhões de meninas e mulheres forçadas a se casar; o bullying, sofrido por um em cada três estudantes entre 13 e 15 anos; e a falta de educação formal, com 6 milhões de crianças a mais fora do sistema escolar desde 2021, elevando o total para 250 milhões.

O suicídio é a quarta causa de morte entre jovens de 15 a 19 anos. A cada ano, quase 46 mil jovens entre 10 e 19 anos tiram suas próprias vidas.

O Unicef, a organização da ONU para a infância, denunciou nesta quinta-feira que uma em cada oito meninas e mulheres (370 milhões) foram vítimas de estupro ou agressões sexuais durante a infância.

– Normalização da violência –

“Será que podemos culpar uma criança por ter nascido em um local em guerra, como o Haiti, Sudão ou Gaza, por ter que fugir, por não saber como será o futuro?”, pergunta M’jid, que teme que “a violência se torne algo normal” em um mundo global e interconectado, “no qual será impossível impedir a mobilidade das pessoas”.

“As crianças estão pagando um preço alto” por problemas que não causaram, lembra.

Mas M’jid, que está neste cargo de confiança há cinco anos e meio, nomeada pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, acrescenta uma nota de otimismo: “É possível acabar com a violência contra as crianças, e isso faz sentido econômico”, afirma.

“A violência contra a infância tem um impacto duradouro na saúde mental das crianças, na sua educação, no desempenho e, mais tarde, na produtividade”, portanto, “não se trata de um problema a ser resolvido, mas de um ativo no qual investir”, argumenta.

Em alguns países, o custo da violência contra a infância representa até “11% do PIB”, e em outros, até “cinco ou seis vezes o orçamento do ministério da Saúde”, aponta a funcionária da ONU.

Assim, M’jid reivindica responsabilidade dos governos e políticas integradas, a participação do setor privado, da sociedade civil e das próprias crianças.

– Conferência mundial na Colômbia –

Em novembro, será realizada na Colômbia a primeira Conferência Ministerial mundial para acabar com a violência contra crianças e adolescentes.

A falta de dinheiro é um problema, mas o fato de o governo decidir onde cortar nos orçamentos é “uma escolha política”, o que nem sempre é fácil, especialmente nestes momentos de “grande divisão política, a questão da extrema direita e o conservadorismo em muitos países”, que provocaram um “retrocesso” na “saúde sexual reprodutiva ou em questões de gênero”, afirma.

“Estamos falando da geração futura. Essas crianças serão os pais da geração futura”, adverte Najat Maalla M’jid.

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