Foi em uma festa na zona leste de São Paulo que Sueli Dias Oliveira experimentou pela primeira vez o cigarro. Junto com ele, o álcool. A sensação de estar na companhia de amigos fumando e bebendo ajudava a garota de 12 anos a escapar da indigesta realidade de casa. Pai e mãe eram alcoólatras e não raro as discussões se transformavam em gritos e os gritos em agressões físicas. A mais velha entre seis irmãos, Sueli interrompeu os estudos quando completou a quinta série. Primeiro porque o pai pediu que a menina ajudasse a colocar dinheiro em casa para sustentar os irmãos e segundo porque já não era mais aquela rotina que lhe proporcionava satisfação. “Sentia revolta porque meu pai brigava com minha mãe e depois me batia.” O dia a dia de Sueli, de hoje 56 anos, é o mesmo enfrentado por mais da metade das crianças de zero a 17 anos que vivem na região central de São Paulo, conhecida como Cracolândia. Uma pesquisa inédita realizada pela Visão Mundial, em parceria com outras organizações não governamentais, revelou que 51% desse público vive em situações de extrema violação de direitos, enfrentando situações de negligência e agressão. Na faixa etária de sete a 11 anos, 37% afirmam que já sofreram algum tipo de violência. “Esse aspecto pode influenciar a repetição do comportamento pelos adolescentes e até comprometer seu desenvolvimento social, afetivo e educacional”, afirma Raniere Ponte, gerente da ONG e coordenador do estudo.

A obrigatoriedade da escola e do trabalho foi rapidamente substituída pela liberdade e pelo prazer incomparável das ruas. “Meus pais já não conseguiam me segurar”, diz. Com 16 anos, Sueli passou a conviver com adolescentes mais velhos e, juntos, perambulavam pela cidade. Em uma dessas andanças, na região do Parque Dom Pedro II, conheceu a cocaína. “Comecei a cheirar e usar balas alucinógenas”, lembra. “Andava sem destino pelas ruas e, muitas vezes, dormia em qualquer lugar”, afirma. Para despistar os pais, inventou que havia encontrado outro emprego em casa de família. A realidade era, contudo, um pouco mais cruel: a garota começou a trabalhar como arrumadeira em um hotel no centro da cidade. Durante a noite, a prostituição garantia seu sustento. “Passava os dias na rua, usando drogas e depois acabava dormindo no hotel com algum cliente.” O levantamento da Visão Mundial revelou que as ruas são apontadas por mais da metade das crianças como o lugar em que mais gostam de estar. O preço pela sensação de liberdade idealizada, porém, é alto. A insalubridade castiga tanto nas moradias, normalmente compartilhadas por famílias numerosas, quanto nos espaços públicos, com a exposição à insegurança e violência. Para se ter ideia, 29% dos mais novos encontram os alimentos que consomem nas ruas. Segundo a coordenadora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em São Paulo, Adriana Alvarenga, as consequências das experiências vividas na primeira infância se desdobram por toda a vida.

A escola, abandonada por Sueli e por muitos, também não se consolida como um caminho alternativo às drogas e à criminalidade. Isso porque, das crianças ouvidas pela pesquisa, que corresponde a um universo que recebe apoio de projetos sociais, 49% apresentam alguma irregularidade ou distorção no que diz respeito à série e idade. Essa escassez de possibilidades faz com que o álcool e a droga surjam cada vez mais cedo na vida dos jovens. A pesquisa detectou que 29% dos adolescentes acessam substâncias ilícitas por meio de amigos. Foi o caso de Sueli, que da cocaína, logo partiu para o crack. “A sensação é de liberdade, como se não houvesse mais ninguém no mundo”, diz. “Quando acabava, eu queria voltar de novo e de novo.” Com a falta do crack, à época consumido na colher, Sueli cometia furtos para comprar a substância. Isso a fez acumular quatro condenações à prisão. Antes disso, aos 19 anos, ela teve seu primeiro filho, Marcelo. O pai da criança era também cliente de Sueli nas noites no centro. Por algum tempo, ele a levou para morar no bairro de Vila Prudente, na zona leste. “Ele bebia e eu fumava maconha. Ele não queria que eu fumasse e por conta disso saíamos na mão várias vezes.”

PELAS RUAS Por 22 anos, Sueli usou drogas e se prostituiu na região central de São Paulo. Hoje, atua como missionária e ajuda garotas de programa da cidade. Crédito: Fabíola Perez

A vida ao lado do companheiro não durou muito. Pouco tempo depois, Sueli decidiu deixar os filhos com os pais. A essa altura já havia engravidado do segundo, Rodrigo. Queria mesmo era desfrutar da liberdade, da droga e da ausência de vínculos e de responsabilidade. Segundo Pontes, da Visão Mundial, após os 18 anos, a vulnerabilidade dos jovens aumenta e a complexidade dos problemas se torna maior. De São Paulo, Sueli se mudou para Santos, no litoral. Na bagagem, a ilusão de começar uma vida diferente. Mas no cais, a prostituição mais uma vez se tornou o ganha-pão para bancar as drogas e as fugas da realidade. Foram quatro meses, mas a ânsia pelo consumo frequente do crack a trouxeram de volta à região da Luz, no centro paulistano. Sueli já não via mais nada pela frente, a não ser o desejo dilacerante pela substância. A pesquisa constatou que 66% dos jovens, entre 12 e 17 anos, têm baixas perspectivas de vida – 50% afirmam estar lutando por condições melhores e 16% não olham para o futuro. Essa falta de perspectiva, diz o estudo, se constitui um campo de ameaça, que pode levar ao envolvimento em atividades ilícitas, depressão, drogas, gravidez precoce e até mesmo o suicídio.

O recomeço

Próximo ao bairro da Luz, havia uma casa de amparo a garotas de programa. Lá, meninas e mulheres de diferentes idades costumavam tomar banho e trocar de roupa. Certa vez, Sandy, apelidada pelas amigas de Pantera, chegou bem vestida, vistosa, arrumada e usando um tênis que saltou aos olhos das colegas. “Onde você conseguiu isso aí? Também quero ganhar um”, questionou Sueli. “Ganhei numa igrejinha ali”, respondeu a amiga. Sueli conta que, quando a viu arrumada, também teve vontade de ganhar um tênis novo. Depois de algumas resistências, ela conheceu a Missão Cena, uma casa que oferece trabalho social no centro de São Paulo. Logo de cara, a ideia de assistir a um culto não lhe soou tolerável. “Não vou conseguir aguentar uma hora longe da função”, dizia em referência ao uso do crack. Apesar da dificuldade dos primeiros dias, Sueli aceitou passar um tempo em uma fazenda para tentar se livrar da dependência. Foram cinco meses até que a vontade de voltar ao crack e às ruas venceu. Quando retornou ao centro, porém, a relação com o espaço não era mais a mesma. “Pela primeira vez na vida, eu tinha um parâmetro, podia comparar a vida nas ruas com outra forma de viver.”

Segundo o levantamento, 33% dos adolescentes presenciam o uso de drogas dentro de casa e ao pedir que mencionassem quais as substâncias mais frequentes, repetiam: álcool e maconha. “Quanto mais próximo o consumo do adulto é da criança, mais rápido se dá o acesso”, afirma Pontes. Além disso, são espaços favoráveis à violência doméstica, exposição ao trabalho infantil e maternidade precoce. Sobre esse último aspecto, há um projeto de lei que busca facilitar a prevenção da gravidez para mulheres em situação de vulnerabilidade social, como usuárias de drogas e adolescentes. A prefeitura de São Paulo começou, no ano passado, a oferecer na rede pública de saúde o implante contraceptivo de longa duração, o Implanton. “Uma política pública apenas não é suficiente”, diz Patrícia Bezerra, vereadora e ex-secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania. “As garotas, já usuárias de drogas, estão sujeitas à sífilis, HPV, HIV, entre outras doenças. Com isso, perdem o parto poder e sofrem violação atrás de violação. Todas são resultado de uma política pública falida de Estado.”

Hoje Sueli é missionária e trabalha na rede de apoio a garotas de programa. Foram 22 anos nas ruas e nas drogas, longe da família, dos filhos e de qualquer amparo. “Antes, acreditava em Deus, mas achava que ele não gostava de mim porque fazia muita coisa errada”, diz. “Me autodiscriminava, achava que Deus só gostava de pessoas que faziam tudo certo.” Aos 34 anos, Sueli conseguiu deixar as ruas e o crack para trás. Voltou a estudar em 2006 e atualmente cursa ensino técnico em auxiliar de enfermagem. Seu sonho é terminar os estudos e cuidar de mulheres, adolescentes e adultas, que assim como ela, encontraram nas ruas um escape às mazelas do dia a dia. Os olhos marejados denunciam o capítulo do passado ainda não encerrado: Sueli perdeu o contato com os filhos. Marcelo, de 31 anos, foi morar com uma madrinha ainda criança e nunca mais apareceu. Rodrigo, de 29 anos, preferiu evitar a mãe. Hoje, está preso em Santos e também teve problema com drogas.