Financiar pesquisas de seu interesse, oferecer presentes a formadores de opinião, promover a autorregulação e enfatizar as ações de responsabilidade social. Para a professora emérita da Universidade de Nova York Marion Nestle essas estratégias amplamente usadas por fabricantes de cigarros agora são repetidas com maestria pela indústria alimentícia.

Em seu primeiro livro lançado no Brasil, “Uma verdade indigesta: como a indústria de alimentos distorce a ciência sobre o que comemos”, a professora descreve como pesquisas financiadas por empresas podem ser usadas como peças de propaganda e também a pressão exercida sobre profissionais de saúde para que seus produtos sejam classificados como livre de riscos ou até mesmo miraculosos.

“É importante usar o bom senso. Um único alimento fará uma diferença profunda em dietas balanceadas que têm muitos alimentos? Acho que não. O conjunto da dieta é o que importa”, afirmou Marion ao jornal O Estado de São Paulo. A seguir, principais trechos da entrevista.

No livro, você fala sobre a ligação entre nutricionistas e indústria. É possível romper esse relacionamento para ter estudos confiáveis?

Os pesquisadores de nutrição não são obrigados a fazer estudos financiados pela indústria; eles podem obter financiamento de agências governamentais ou fundações privadas. Quando a indústria alimentícia financia estudos, procura tipos específicos de resultados, preferencialmente que favoreçam seus interesses. Isso é pesquisa de marketing, não ciência. A pergunta a fazer é se o tópico de pesquisa é iniciado pelo patrocinador ou pelo pesquisador. Pesquisas iniciadas pelo investigador tendem a se concentrar em questões científicas importantes, não em benefícios de um determinado produto alimentício. A qualidade científica dos estudos financiados pela indústria raramente é um problema. O viés não está em como o estudo foi conduzido; a maior parte do viés aparece em como as questões de pesquisa foram enquadradas.

A pressão da indústria sobre nutricionistas está crescendo?

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No meu livro, dou exemplos de como as empresas de alimentos tentam influenciar opiniões de nutricionistas. A Coca-Cola, por exemplo, pagou nutricionistas para usarem redes sociais com objetivo de classificar bebidas açucaradas como apropriadas. Nutricionistas estão em posição de influenciar o que os pacientes comem. Por isso é compreensível que as empresas de alimentos queiram que esses profissionais aprovem seus produtos.

Se estudos são tendenciosos, como devemos nos alimentar?

Felizmente, a melhor orientação nutricional é simples e tem sido a mesma há décadas: tenha uma dieta baseada em vegetais; controle a ingestão calórica (não coma demais) e evite alimentos ultra-processados (“junk food”). O escritor Michael Pollan alerta: não coma muito e prefira vegetais.

Podemos confiar em pesquisas sobre riscos ou benefícios de determinados alimentos?

É importante usar o bom senso. Um único alimento fará uma diferença profunda em dietas balanceadas que têm muitos alimentos? Acho que não. O conjunto da dieta é o que importa. Desconfio de estudos financiados por indústrias de alimentos, especialmente aquelas divulgadas como “avanços”, “milagres”, “curas para muitos problemas de saúde” ou ainda a ideia de “tudo o que você sabia sobre nutrição está errado”. Não é assim que a ciência trabalha.

Você diz que é necessário reconhecer e gerenciar a influência da indústria no meio acadêmico. Isso é possível em países onde a indústria também influencia autoridades e reguladores?

A revista médica britânica The Lancet publicou recentemente um longo artigo sobre como gerenciar as práticas de marketing da indústria de alimentos. Nesse texto, os autores recomendaram deixar a indústria de alimentos fora da formulação de políticas públicas nessa área. Parece-me um conselho sensato. Pode não ser politicamente fácil, mas vale a pena defender políticas sem influência da indústria.

O Brasil está estudando mudança das regras para os rótulos de alimentos. A indústria critica as advertências, alegando que isso causa medo desnecessário. Qual é a sua avaliação?

Temos o exemplo do Chile (que recentemente alterou as regras e agora traz mensagens de advertências nos rótulos) . Se quisermos uma redução do consumo de alimentos ultraprocessados, as pessoas precisam identificá-los. Os rótulos de advertência chilenos são comprovadamente eficazes para incentivar as pessoas a escolherem alimentos. Os fabricantes desses alimentos ultraprocessados estão preocupados porque os rótulos desestimulam o consumo, mas, do ponto de vista da saúde pública, é exatamente isso o que é necessário.

Como o Brasil pode se proteger de informações distorcidas sobre alimentos?

Os defensores da saúde pública devem estar atentos ao apontar quando a informação vem da indústria e como a indústria está usando sua própria informação para lançar dúvidas sobre informações independentes. O artigo da Lancet ao qual me referi anteriormente tem uma longa lista de maneiras pelas quais os governos podem combater tentativas de a indústria enganar o público ou influenciar dietas.


Alimentos ultraprocessados são baratos. Como convencer as pessoas a fazer escolhas mais saudáveis?

Alimentos pouco processados também são baratos, mas podem ser menos práticos ou exigir habilidades culinárias. No entanto, preço é uma questão de política pública. Nos Estados Unidos, o governo subsidia os custos dos alimentos ultraprocessados para torná-los mais baratos. Os custos de marketing, por exemplo, são dedutíveis do imposto de renda. Essas políticas podem ser alteradas para promover alimentos mais saudáveis.

Entre mensagens baseadas em pesquisas distorcidas, qual você considera mais perigosa?

Não usaria a palavra “perigosa”. Mais importante é informar como funcionam as pesquisas nutricionais e evitar que elas sejam desqualificadas ou manipuladas. A indústria alimentícia se beneficia quando as pessoas não acreditam nas pesquisas que identificam riscos identificados de certos produtos e também quando se duvida dos benefícios em evitar alimentos ultraprocessados. Não acho que as empresas de alimentos devam financiar pesquisas de marketing fingindo ser ciência ou participando do desenvolvimento de políticas de alimentação e nutrição. As empresas de alimentos não são agentes das políticas públicas. São empresas com objetivo simples: vender e lucrar.

Mais informações

Uma verdade indigesta

Autora: Marion Nestle

Tradução: Heloisa Menzen

Editora: Elefante

(368 páginas, R$ 59,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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