22/04/2020 - 12:30
A disseminação acelerada do novo coronavírus tem provocado temor em aldeias do Brasil. Boletins epidemiológicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, indicam aumento de 68,7% de diagnósticos confirmados da covid-19 entre índios, o que preocupa infectologistas e desafia estratégias de prevenção dos governos.
O número de infecções em indígenas, grupo considerado mais vulnerável à doença, aumentou de 16 para 27 casos desde a última segunda-feira. Oficialmente, o País também registrou três mortes – duas em Manaus e outra em Roraima.
De acordo com o Censo IBGE 2010, existem ao menos 305 etnias e 896,9 mil indígenas no Brasil. O jornal O Estado de S. Paulo procurou tribos das cinco regiões do País, com realidades distintas, para abordar medidas preventivas e os efeitos da pandemia nas aldeias. Em comum, os povos relataram que tentam seguir o isolamento social. Mesmo aqueles que vivem em contexto urbano.
“Se um vírus desse entra na comunidade, é o extermínio de um povo”, afirma Sonia Ara Mirim, líder Guarani e moradora da Terra Indígena Jaraguá, na cidade de São Paulo. A aldeia tem sobrevivido à base de cestas básicas doadas para se manter longe de aglomerações.
Desde 17 de março, portaria da Fundação Nacional do Índio (Funai) proíbe não índios de entrar nas aldeias. Pelo Brasil, caciques e lideranças mandaram fechar acessos e espalharam faixas de alerta. Os povos, no entanto, relatam dificuldades diversas: desde escassez de equipamentos de proteção, falta de testes e ausência de rede hospitalar, ao risco de passar fome por desabastecimento.
Boletins da Sesai apontam que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) Alto Solimões e Manaus, na região amazônica, são responsáveis por 22 dos 27 casos de covid-19 – ou 81,5% dos diagnósticos entre indígenas. Com histórico de invasão de garimpeiros, essas áreas abrigam aldeias isoladas, cujo acesso só é possível por aeronaves ou embarcações.
O Instituto Socioambiental desenvolveu um índice para medir o grau de exposição de tribos ao coronavírus. Nas dez primeiras posições de mais risco, cinco ficam na região Norte, quatro em São Paulo e uma no Rio Grande do Sul. Coordenador do Programa de Monitoramento do ISA, Antonio Oviedo avalia que, em geral, o sistema de saúde em terras indígenas não está à altura da pandemia – para alguns povoados, o socorro a hospitais pode demorar dias só no deslocamento.
“Existem municípios que não dispõem de leito hospitalar e respirador, mas lá têm duas ou três terras indígenas com 5 mil, 6 mil habitantes”, diz. “Esses dados mostram o quão vulnerável e em risco essas populações estão no território nacional.”
Os Guarani Kaiowá da comunidade Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS), enfrentam, além da violência de invasores, o perigo do coronavírus. “Os rezadores têm rezado todas as noites, invocando os espíritos de proteção”, relata a liderança Clara Almeida, que reclama de falta de equipamentos de proteção e de orientação por parte de equipes da Sesai.
Em março, a Sesai elaborou plano de contingência para o vírus em povos indígenas, com três níveis de resposta: “alerta”, “perigo iminente” e “emergência em saúde pública”.
Por nota, o Ministério da Saúde diz orientar tribos, gestores e colaboradores desde janeiro. Cada Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) elaborou um plano de ação específico à realidade do local, diz a pasta.
A Funai afirma ter distribuído 4,2 mil cestas básicas para tribos em situação de vulnerabilidade em várias regiões.
‘Toda doença é um espírito’
Em ia-tê, a linguagem da tribo Fulni-ô, “novo coronavírus” se diz “ixtiwa”. A pronúncia começa por um chiado prolongado, quase como um sopro: Ishh. Em seguida, a língua se põe entre os dentes e – de golpe curto – forma a sílaba tônica: Tí. Só então os lábios articulam um círculo pequeno que vai se abrindo rapidamente: Uáá. Não mais do que isso. Ishh-Tí-Uáá. Entre os falantes de ia-tê, a palavra equivale a esse tal coronavírus – ou catapora, enxaqueca, amidalite, insuficiência renal, diabetes, lepra, frieira, piriri. Tanto faz. Para os Fulni-ô, todas as doenças têm um nome só.
Presente em registros etnográficos desde 1749, os Fulni-ô vivem no sertão de Pernambuco, no chamado polígono das secas, em assentamentos de terra batida que contornam a cidade de Águas Belas, lugarejo com 43 mil habitantes e IDH de 0,526, inferior ao do Quênia. Entre estudiosos, a tribo ganha destaque por manter rituais religiosos e a língua nativa imunes à passagem do tempo. “Na nossa crença, toda doença é um espírito. Dizer ‘ixtiwa’ é uma maneira de reverenciá-la”, explica o índio Ubiran Fulni-ô, de 36 anos, que atua como agente de saúde no território.
Embora ainda não haja notícia de infectados por covid-19 na aldeia ou em seus arredores, é errado pensar que a doença não forçou a tribo a repensar medidas de prevenção. “Nosso povo vê o que o jornal mostra o tempo inteiro. Somos seres humanos e temos receio de alguma pessoa da comunidade venha a adoecer”, diz Ubiran. No povoado, por mais respeito à entidade, a ordem é não deixar o coronavírus entrar.
No início da crise, os Fulni-ô que moravam longe foram convocados a voltar – hoje, cerca de 7 mil pessoas estão reclusas no povoado, segundo estimam os locais. Eventos costumeiros, como palestras ou apresentações de dança fora da aldeia, também foram cancelados para reduzir riscos de contágio.
Diariamente, Ubiran visita 88 famílias, confere o isolamento social e orienta sobre cuidados com a higiene. “A Sesai fez as orientações e nós repassamos ao povo: queremos multiplicadores de saúde”, afirma. Escasso no sertão, o álcool em gel é dividido entre todos. Rende pouco. Também é incomum encontrar máscara de proteção – basicamente só médicos e enfermeiros estão “cobertos”, como se fala na tribo. “Vivemos em um lugar quase sem água, de quentura, muita poeira, fogueira e fumaça”, descreve. “Para prevenir, o mais fácil é usar sabão e lavar a mão direitinho.”
Com base no trabalho de campo, o agente de saúde indígena calcula que ao menos 10% da tribo têm mais de 60 anos – grupo expressamente proibido de deixar suas casas até para comprar comida.
Na semana passada, os idosos da tribo foram vacinados contra gripe influenza. Para fechar o corpo contra o coronavírus, contudo, sábios Fulni-ô têm recomendado chá de quina-quina, tipo de arbusto comum na região.
Guerreiros guardam aldeia
Com a luta deflagrada, líderes Krahô convocaram onze guerreiros e, aos escolhidos, deram a missão de guardar os portais da aldeia. Eles ficam 24 horas por dia em alerta, revezando-se apenas para dormir. Têm ordem de não deixar ninguém passar – é que os visitantes podem trazer com eles o novo coronavírus para a tribo. O cacique confirma que estão todos alarmados: “Quando essa doença aparece na TV, assusta. A figura que montaram é uma coisa horrível, toda cabeluda, o povo fica muito preocupado”.
Conhecidos como guardiães do cerrado, os cerca de 3,6 mil Krahô vivem em 38 aldeias situadas em uma área de 303 mil hectares em Itacajá e Goiatins, municípios às margens do Rio Tocantins, na região nordeste do Estado. Com a história de interação com brancos marcada por reviravoltas, o grupo indígena já foi alvo de massacre de fazendeiros na década de 1940 e hoje mantém boa relação com comerciantes e turistas – atividade, aliás, provedora de parte considerável da renda do povoado e que precisou ser interrompida por causa da covid-19.
Uma das lideranças da aldeia, Getúlio Krahô, 76 anos, diz que a tribo tem levado a sério a pandemia e se mantido em isolamento social. “Por causa dessa gripe, o povo ficou sem jeito, ficou preso. Existe muita preocupação. Toda hora discutimos o problema, quando vai acabar, o que precisa ser feito”, relata. “Não posso mais chegar na cidade, fazer minhas compras e voltar. Pediram e eu tenho de obedecer. Tem de respeitar.”
Foi de discussões na tribo que nasceu a estratégia de deixar guerreiros em vigília, enquanto os demais ficam nas casas. Em guaritas, os homens destacados controlam não só a chegada de não indígenas – ou “cupen”, para os Krahô – mas também a saída dos aldeados, só autorizados a ir ao centro urbano, a cerca de oito quilômetros de lá, diante de extrema urgência, como atendimento médico ou saque de benefícios sociais.
As poucas máscaras de proteção que chegaram às aldeias foram destinadas aos sentinela, por estar mais suscetíveis ao contato externo. Fogueiras, em volta das quais a comunidade se reúne para contar histórias, agora são acesas com intuito de ajudar a iluminar locais ermos e deixar a fiscalização mais fácil.
Os indígenas se mobilizaram, ainda, para fazer uma vaquinha na comunidade e comprar celulares para os vigilantes. “Quando alguém da aldeia precisa de alguma coisa, eles ligam para os comerciantes da cidade, que vêm trazer a mercadoria até a guarita”, relata o cacique Roberto Krahô. “Antes de entrar, todo material passa por limpeza com sabão, sabonete, lenço.”
Considerado sábio no povoado, Getúlito Krahô diz que a prioridade é preservar vidas. Segundo ele, o Brasil precisa corrigir políticas públicas e alterar a maneira de enxergar os povos indígenas, garantindo-lhes segurança, sem distinção. “No chão desta terra, a gente aprende assim: você, meu irmão, tem o nariz para frente. E eu, por acaso, tenho o nariz para trás?
Fome
Nas aldeias Xakriabá acontece assim: em se plantando, nada dá. Castigado pela falta de chuva em São João das Missões, município no norte de Minas, o povoado pré-colonial testemunhou nas últimas décadas gerações de índios desistirem da lavoura para tentar a vida nas cidades. Faz pouco mais de um mês que o cenário mudou. Por causa do coronavírus, postos de trabalho minguaram. Sem emprego, centenas de membros da tribo, enfim, retornaram às terras dos seu ancestrais.
Pelo registro de moradores, a população aumentou de 9,1 mil para mais de 10 mil pessoas – cenário que preocupa o coordenador de equipes de saúde indígena, Marciel Bispo, 34 anos. Segundo ele, as famílias apareciam aos montes, para aflição dos grupos sanitários empenhados no combate à covid-19. “Se a doença chegar, muita gente vai sofrer.”
Distribuídas por 34 aldeias, a maioria das casas é simples, com gente demais e cômodos de menos, descreve o enfermeiro Xakriabá. Algumas, de pau a pique, nem janela têm. “As moradias são escuras, quase sem ventilação. Você chega a ver quatro ou cinco crianças em um quarto pequeno, dormindo emboladas. As famílias correm risco maior nessa situação”, diz.
A escassez de alimentos e de itens básicos de higiene também começa a dar os primeiros sinais de alerta. “Quem saía para ganhar o pão de cada dia não está recebendo. Muitas pessoas já sentem dificuldade para comprar”, afirma Bispo. “Sem ajuda, metade vai passar fome”.
Formado em enfermagem em 2009, Bispo foi o primeiro Xakriabá a pisar em uma universidade, após ter sido beneficiado por cota étnica, segundo conta. Hoje, atua na prevenção da aldeia contra a covid-19. Parte do seu trabalho é organizar a avaliação clínica e cadastro, com informações como cidade de origem e histórico de doenças, dos índios que voltaram. No território, se alguém apresentar sintoma da doença, a ordem é ficar 14 dias de quarentena.
“Por tempo indeterminado fica expressamente proibida a entrada de pessoas não indígenas”, diz uma faixa pendurada na entrada do território, habituado a receber vizinhos, turistas e pesquisadores.
Embora o povoado tenha dez postos de saúde, o hospital de referência fica a mais de três horas de viagem, em Montes Claros, cidade a 256 quilômetros de distância. Na avaliação de Bispo, a malha de atendimento está aquém do necessário para lidar com pandemias. “Se sair indígena doente daqui, não há garantia de que vai conseguir vaga em CTI”, afirma.
Por enquanto, a única suspeita de covid-19 aconteceu com um jovem de 21 anos, morador de Goiânia. De volta à tribo, ele tinha febre alta e tosse. Passou duas semanas em casa, sendo obrigado a usar máscara e recebendo visita de equipes de saúde. A quarentena já acabou mas, até hoje, ninguém sabe confirmar se ele estava ou não com coronavírus. O teste solicitado ao governo, segundo Bispo, nunca chegou à aldeia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.