Comitiva de indígenas brasileiros visita em museu de Stuttgart artefatos coletados por príncipe no século 19. "Foi como ver um ancião meu ali", diz membro do povo Pataxó. MiDemorou mais de dois séculos para que artefatos indígenas levados do sul da Bahia se reunissem com seus donos originários. Na segunda-feira (28/04), uma comitiva com três membros do povo Pataxó visitou Stuttgart, no sul da Alemanha, em uma iniciativa para resgatar uma cultura ancestral fragmentada.
O grupo refez o caminho percorrido em maio de 1817 por Maximilian zu Wied-Neuwied, um príncipe da região da Renânia, na então Prússia, que reuniu ao longo de dois anos de expedição no Brasil uma expressiva coleção de artefatos indígenas.
Numa sala do museu etnográfico Linden, os visitantes eram aguardados por 16 artefatos de tamanhos variados, a única herança material dos seus antepassados hoje identificada. As bolsas, rede, arco e flechas, tecidos e matxakás — adornos de valor espiritual para os Pataxó — estavam dispostos ao lado de manuscritos e ilustrações originais de Wied-Neuwied.
O jovem Xohãihi Pataxó, cujo nome significa "herói" na língua Patxôhã, observou fixamente os detalhes das peças ao longo da visita de aproximadas três horas. Depois, tomou nas mãos o arco que um dia serviu para a proteção do seu povo e ergueu os braços sobre a cabeça, como um guerreiro.
"Foi como ver um ancião meu ali", ele disse sobre o reencontro com os artefatos.
Reapropriação cultural
A visita da comitiva à Alemanha faz parte de um projeto que produz um longa e um curta metragem protagonizando o povo Pataxó, cujas cenas vão incluir o reencontro com os artefatos no museu.
Apoiada pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, com recursos da Lei Paulo Gustavo, a iniciativa liderada por um pesquisador da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) fomenta esforços de revitalização cultural nas aldeias, levados a cabo sobretudo pelas novas gerações.
Ao chegar em casa, Xohãihi pretende mostrar as imagens dos artefatos no seu celular para a avó, que o criou mergulhado na cultura indígena, e reproduzir ele mesmo os matxakás que encontrou na Alemanha. "Hoje em dia a gente se orgulha de falar que é pataxó. Nossos avós não podiam falar a língua materna, praticar rituais nem falar da sua crença para sobreviver."
Naturalista considerado precursor da etnologia moderna no Brasil, Wied-Neuwied trocou objetos com vários povos indígenas entre o Espírito Santo e a Bahia. Em seu livro Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817, o apelidado "Alexander Humboldt renano" lançou um olhar colonizador sobre os Pataxó, a quem caracterizou como selvagens e incivilizados.
Os descendentes indígenas souberam ressignificar a obra. Recuperaram o seu glossário de 90 palavras do Patxôhã, que incluía nomes de artefatos que se tinham perdido, e passaram a reproduzir os cortes de cabelo tradicionais ali registrados. Em Stuttgart, Xohãihi usava adornos no lábio inferior e na orelha semelhantes aos descritos pelo príncipe renano, além de um matxaká próprio.
Decifrando a própria língua
Uma vez que descobriram os primeiros vocábulos, os Pataxó se mobilizaram para também decifrar os termos usados pelos anciãos vivos e criar palavras para aquilo que não existia antes. Hoje enriquecido, embora ainda incompleto, o idioma voltou não só à sala de aula, como também à vida nas aldeias.
Professora de Patxôhã, a jovem Yacewara Pataxó foi registrada com nome indígena, ao contrário dos seus pais e tios. "A gente pode trazer de verdade aquilo que já era nosso. Isso não precisa morrer, pode continuar com a gente", ela disse em Stuttgart.
O conhecimento das palavras antigas tem papel central na recuperação de culturas indígenas. Permite entender os cantos, cujas letras podem ser reproduzidas por gerações desacompanhadas do seu significado, ou metáforas por trás dos nomes da fauna e da flora, por exemplo.
"Estes nomes falam muito sobre a visão de mundo de um povo", explica Fabrício Ferraz Gerardi, professor de Linguística da Universidade de Tübingen.
Em Stuttgart, o museu Linden abriga ainda artefatos de outros povos indígenas do Brasil, incluindo de grupos Boe (conhecidos também como Bororo) de Mato Grosso. Com apoio de Gerardi, a viagem de uma artesã da Terra Indígena Meruri está sendo idealizada para que ela possa observar as técnicas empregadas e reproduzi-las.
No ano passado, um grupo de boes de outra região visitou em Paris objetos coletados nos anos 1930 pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss e sua então esposa, a etnóloga Dina Dreyfus, hoje mantidos no Museu do Quai Branly.
Milhares de peças pelo mundo
Não existe um inventário completo ou oficial de quantas peças indígenas brasileiras possam hoje estar espalhadas pelo mundo. Ao longo de séculos, artefatos se moveram com colonizadores, missionários e expedicionários, integraram diversas coleções e foram negociados separados de seus pares entre museus.
Por vezes, se conhecem informações tão detalhadas quanto a localização onde foram produzidos estes objetos por um determinado povo desde o século 16. Já outras peças nunca foram devidamente identificadas quanto à região ou ao povo de origem.
Hoje, rastrear estes vestígios culturais e espirituais, perdidos nas entranhas de museus estrangeiros, é um desafio global. E não só para estudiosos, como também para povos indígenas, que se mobilizam cada vez mais em busca da materialidade das suas raízes.
Depois do incêndio no Museu Nacional em 2018, o Setor de Etnologia e Etnografia da instituição catalogou 42 mil itens brasileiros em 16 grandes museus na Europa e nos Estados Unidos. Entre objetos etnográficos, arquivos sonoros, audiovisuais, fotográficos e iconográficos, as peças indígenas provêm de todas as regiões do Brasil, sobretudo da região amazônica, e datam dos séculos 16 ao 21.
Apenas no Museu Etnológico de Berlim, há cerca de 10 mil itens, dos quais aproximados 2 mil foram catalogados. Já um levantamento da artista brasileira Daiara Tukano mapeou 1.028 peças brasileiras nas Coleções Estatais de Arte de Dresden.
O objetivo do Museu Nacional era compensar historicamente os milhares de itens consumidos pelo fogo com uma base de dados digital pública, gratuita e em português. O site do inventário passa por manutenção para acréscimo de informações e deverá voltar ao ar ainda neste ano.
Já na Universidade de Leiden, na Holanda, os alunos da museóloga brasileira Mariana Françozo localizaram e inventariaram mais de 2 mil objetos ligados a quatro grupos indígenas do Maranhão em Europa, Japão, Estados Unidos e Canadá.
Repatriação é tema político
Ganha tração na Europa o debate sobre o retorno de peças ligadas à ancestralidade de povos colonizados aos seus países de origem desde 2017. À época, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse que a herança africana não deveria ser mantida exclusivamente por museus europeus, defendendo restituições temporárias ou definitivas.
Hoje brotam iniciativas de cooperação com povos indígenas ao redor do continente, com notórias repatriações já concluídas. No ano passado, a Dinamarca devolveu ao Brasil um de onze mantos tupinambá que existem em museus estrangeiros, enquanto a França retornou 585 peças provenientes de mais de 40 povos indígenas brasileiros.
Já em 2011, membros do povo Krenak haviam recebido o crânio de Joachim Kuêk, um indígena botocudo levado do Brasil por Wied-Neuwied. O serviçal do príncipe renano fora tratado como objeto de estudo após a sua morte e doado à Universidade de Bonn, na Alemanha.
Não há negociações formais para a repatriação dos artefatos pataxó no Museu Linden.
Demanda por estruturas
Os passos envolvidos na repatriação de artefatos ao Brasil são vários e complexos, começando com a realização de consultas amplas com comunidades indígenas. O Ministério dos Povos Indígenas criou em 2023 um grupo de trabalho para tratar do tema e desenvolve protocolos para melhorar o acesso a coleções.
Citando o trauma deixado pelo incêndio no Museu Nacional, observadores argumentam que é preciso ainda garantir estruturas de conservação adequadas nos museus brasileiros, no caso de eventuais novas devoluções.
"Há deficiências, mas elas não são tão profundas a ponto de servirem de justificativa para a não devolução. Sempre vai precisar de investimento, porque a chegada de peças demanda espaco e novas técnicas," diz Françozo. Ela destaca ainda que o Brasil tem uma museologia social avançada e que os museus brasileiros acumulam uma história de décadas de cooperação com povos indígenas, precedendo pares europeus.
Os artefatos têm impacto também sobre as lutas por território dos povos indígenas brasileiros. Para especialistas, a sua redescoberta engrossa as evidências contra contestações da sua presença no Brasil desde tempos imemoriais.
Na Bahia, os Pataxó vivem sob um contexto de pressão territorial e assassinato de lideranças, enquanto buscam assegurar e expandir suas terras demarcadas.
"Esta é uma memória viva e um material palpável com muito mais do que 50, 80 ou 100 anos. A nossa história não começa nem termina em 1988", disse Karkaju Pataxó, diante dos artefatos em Stuttgart, em referência ao ano de base do Marco Temporal.
Segundo a tese jurídica, que segue em negociação no Congresso Nacional, povos indígenas somente têm direito às terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro daquele ano.