Indenização às vítimas de Mariana vira disputa entre governos, empresas e advogados

Visão geral do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), em 6 de novembro de 2015, após a ruptura da barragem de rejeitos de minério
Visão geral do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), em 6 de novembro de 2015, após a ruptura da barragem de rejeitos de minério Foto: AFP

As negociações para chegar a um acordo de indenização às vítimas da tragédia de Mariana, em Minas Gerais, transformaram-se numa guerra de narrativas de autoridades públicas que parece tornar cada vez mais distante a reparação dos danos causados pela Samarco, mineradora controlada pela Vale e a BHP Billiton. Em novembro de 2015, o rompimento da Barragem do Fundão, pertencente à empresa, provocou um desastre de profundo impacto  humano, ambiental e econômico, com 18 mortos, um desaparecido e um rastro de devastação no curso do Rio Doce até sua foz, no estado do Espírito Santo.

Em entrevista ao portal IstoÉ, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, afirmou que o governo federal precisa ser questionado pela demora na assinatura do acordo de reparação. A proposta das empresas envolvidas na tragédia é de R$ 100 bilhões, valor que atende tanto às expectativas dele, pelo lado mineiro, quanto às do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande.

“Eu e Casagrande somos totalmente favoráveis a fechar pelo valor já ofertado pelas empresas. O governo federal é que está querendo um recurso maior. Por isso, os estados afetados não estão sendo atendidos. Minas Gerais e Espírito Santo estão sendo prejudicados por esse atraso”, afirmou Zema (leia aqui a entrevista na íntegra).

Em declaração concedida no final de junho à Rádio FM O Tempo, de Minas Gerais, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, acusou a Vale de protelar a indenização para deixar o dinheiro aplicado em operações financeiras: “Estou predisposto a negociar a dívida da Vale, não com Minas Gerais, mas a dívida da Vale com o povo da região que foi solapada pelas barragens de Mariana e Brumadinho”.

Ao citar a cidade mineira de Brumadinho, Lula referiu-se aos mais de 23 mil atingidos pelo rompimento da barragem da Vale na Mina Córrego do Feijão, naquele município, em janeiro de 2019. O desastre causou 270 mortes e gerou grande devastação ambiental. Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, um acordo para a reparação foi firmado dois anos depois, em 4 de fevereiro de 2021.

Em entrevista ao Portal UAI, em 20 de janeiro de 2024, sobre os cinco anos da tragédia da Mina Córrego do Feijão, o procurador-geral de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior, comentou o que foi feito para chegar ao acordo de reparação às vítimas de Brumadinho e afirmou que o processo poderia contribuir para o caso de Mariana: “Os erros de Mariana nos ajudaram a fazer algo melhor em Brumadinho. E Brumadinho pode servir de parâmetro para Mariana, pois ali todas as partes envolvidas não estão satisfeitas com as tentativas de acordo, inclusive as empresas”.

A insatisfação geral acabou levando o litígio também às cortes internacionais, caminho escolhido pelo Consórcio Público de Defesa e Revitalização do Rio Doce (Coridoce), que reúne os prefeitos das cidades que pleiteiam ressarcimento da Samarco e de suas controladoras Vale e BHP Billiton.

Segundo reportagem publicada pelo portal Poder 360, o Coridoce enviou ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) — onde tramita a causa no Brasil — uma série de pedidos sobre a repactuação do acordo pelo desastre de Mariana. Entre os pleitos, pede que as remunerações ao escritório britânico Pogust Goodhead (PG), que representa diversas cidades em uma ação contra a Vale e a BHP Billiton no Reino Unido, sejam pagas pelas mineradoras em um acordo por fora da indenização.

O pedido faz parte da negociação da repactuação dos valores a serem recebidos pelos municípios. Uma das condições impostas pelas mineradoras, conforme a reportagem, é que as cidades desistam da ação em curso no Reino Unido para receber a indenização no Brasil. Mas os municípios entendem que os honorários a que o escritório terá direito de receber em função da desistência devem ser pagos pelas mineradoras.

Pode-se deduzir, à primeira vista, que se trata de um pleito razoável no âmbito da negociação. No entanto, em entrevista publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em 6 de julho de 2024, Thomas Goodhead, um dos fundadores do escritório de advocacia PG, expôs sua estratégia para  representar seus clientes brasileiros e os motivos que levam o escritório a recorrer a fundos de investimento para custear uma causa de proporções bilionárias como a de Mariana.

“Eu tenho de pagar contadores, advogados, em uma causa que vai custar 250 milhões de libras esterlinas (o equivalente a R$ 1,75 bilhão). Nenhuma ONG pagaria por isso. Não cobramos nada dos nossos clientes. Por isso recorremos aos fundos. Se você tem sucesso, precisa pagar de volta o investidor, como em qualquer negócio. Sem investidores, pessoas que aceitam riscos, não haveria justiça. Promotores públicos têm recursos limitados.”

O escritório inglês representa cerca de 700 mil pessoas, 46 municípios e 2,5 mil organizações religiosas, autarquias e empresas na ação que move contra a BHP no Reino Unido. No processo, pleiteia que o valor de reparação da tragédia de Mariana seja julgado também pela Justiça britânica.

Embora não cobre nada para defender seus clientes durante a tramitação do processo, sua remuneração vem no caso de ser bem-sucedido na causa, ao auferir um percentual do valor a ser pago pela outra parte no litígio. “Os honorários de Mariana podem ser de 30%. Para municipalidades, são 20%. Para comunidades indígenas, são pro bono (gratuitos). Quando há acordo, nossos honorários são pagos à parte. Não fazem parte da compensação dos clientes. Colocamos o preço de acordo com o risco”, explicou Thomas Goodhead.

Analistas jurídicos questionam por que o Coridoce resolveu tomar as dores do PG em vez de deixar com o escritório inglês a negociação jurídica dos termos de um eventual acordo com as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton para que as cidades concordem em manter o julgamento da ação somente nas cortes brasileiras.

“A desistência da ação na Inglaterra gerará custos e honorários, contratuais e de sucumbência, além de outras despesas descritas no documento para os municípios. Como as empresas estão condicionando a adesão dos municípios na repactuação à desistência da ação, nada mais justo e correto elas arcarem com tais despesas”, disse o advogado do Coridoce, Samuel Lomas Santos.

Há quem conteste juridicamente a participação das prefeituras na contenda nas cortes britânicas. Em 12 de junho de 2024, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) entrou com pedido de medida cautelar no Supremo Tribunal Federal (STF), para reconhecer a inconstitucionalidade da atuação de municípios brasileiros em pleitos judiciais fora do país.

Os últimos valores da indenização decorrente da tragédia de Mariana oferecidos para serem pagos no Brasil foram divulgados pela Vale em 12 de junho de 2024, em comunicado de fato relevante ao mercado no qual a mineradora informa que, em conjunto com a Samarco Mineração S.A. e a BHP Billiton Brasil Ltda., apresentou ao TRF-6, em 11 de junho de 2024, nova proposta de acordo relacionada ao rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana (MG).

O acordo prevê o pagamento de R$ 82 bilhões em dinheiro em 20 anos à União, aos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e aos municípios, além de R$ 21 bilhões em obrigações a cumprir. Também inclui R$ 37 bilhões já aplicados em ações de reparação e compensação pela mineradora nas áreas atingidas pelo desastre.

Em 12 de julho de 2024, a Vale e a BHP Billiton, acionistas da Samarco, informaram ter feito um acordo que afeta o andamento do processo que tramita no Reino Unido sobre as responsabilidades pela tragédia ocorrida em novembro de 2015.

De acordo com a Agência Brasil, o principal desdobramento é que a Vale não responderá mais perante o tribunal estrangeiro, cabendo apenas à BHP Billiton realizar a defesa. As duas mineradoras pactuaram que, em caso de condenação, cada uma arcará com 50% das indenizações fixadas.