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Se a queima ou derrubada de estátuas fosse a solução para o preconceito, a democracia racial seria instaurada feito um passe de mágica. Esse tipo de atitude tem, no entanto, justamente o efeito reverso, por uma evidente razão: destruir monumentos que simbolizam e eternizam personalidades que foram escravagistas significa negar a história — e, negar a história, é negar a existência e a evolução da humanidade. Mais: abre-se caminho para que comportamentos inaceitáveis do passado repitam-se no presente. É justamente para que não ocorra tal repetição que “a história é um olhar do presente sobre o passado”, como ensina Victor Missiato, doutor em história e professor do colégio Mackenzie, em Brasília. “Pode-se derrubar todos os monumentos do mundo, mas isso não muda o que aconteceu”, diz o especialista em estudos afro-americanos David Blight, da Universidade de Yale, nos EUA. “No presente, temos de ser cuidadosos com nossas crenças e atitudes em relação ao passado”. Não foi com o cuidado metodológico recomendado por Blight que agiram, por exemplo, aqueles que atearam fogo na estátua do bandeirante Manuel Borba Gato, na semana passada, na cidade de São Paulo.

EXPULSÃO A estátua do general escravagista Robert Lee (1807-1870) teve de ser removida do Capitólio: será substituída pela de Barbara Johns, pioneira na luta pelos direitos civis nos EUA (Crédito:Office of Governor Northam)

Quem tentou incendiá-la e por quê? Seguindo uma perversa forma de revisionismo, que ocorre em diversos países, membros do grupo denominado “Revolução Periférica” assumiram a responsabilidade pelo ato. Entre eles está o fundador da sigla “Entregadores Antifascistas”, Paulo “Galo” Lima, preso ao se apresentar à polícia. Ele tentou justificar o seu ato: “foi para levantar o debate sobre um genocida e abusador”. Agindo como agiu (a ideia de derrubada da estátua vem desde 2020), Lima não abre debate algum, até porque pessoas sérias empenhadas verdadeiramente na luta contra o racismo não endossam essa atuação. O paulista Borba Gato (1649-1718), assim como outros bandeirantes, ao mesmo tempo em que desbravava o País entre os séculos XVII e XVIII, chegando a ampliar nossas fronteiras, ia atrás de riquezas naturais e minérios, escravizava indígenas, capturava, em troca de recompensas, escravizados que tinham conseguido fugir de seus feitores — em confrontos, chegou a exterminar etnias.

Tanto Borba Gato quanto seus pares foram alçados a símbolos de São Paulo, por intelectuais e políticos, com o objetivo, sobretudo, de valorizar o estado paulista junto a outras unidades do Brasil mais ricas e prestigiadas. Assim, os bandeirantes entraram para a história, simultaneamente, como heróis e escravocratas. “É preciso entender a complexidade humana”, diz Missiato. É preciso, também, entender a complexidade de épocas — em 1963, quando se deu a inauguração da estátua, erigida pelo escultor brasileiro Júlio Guerra, isso já ocorreu sob muitas críticas. “A história é lugar de embate e confronto”, diz ele. Não se trata, aqui, em hipótese alguma, de se fazer a defesa da escravidão. Ela é execrável em tempos passados, presentes e futuros. Não pode, por nenhuma razão, o homem escravizar o homem. O que é preciso, no entanto, é que não se faça um revisionismo inconsequente. Caso contrário, corre-se o risco de se ver incendiada ou derrubada a estátua de Tiradentes, na cidade mineira de Ouro Preto, porque ele era dono de escravizados; ou ver-se destruídos os símbolos que lembram Xica da Silva, que da condição de escravizada alcançou o status de princesa, e, mesmo sendo negra, escravizou negros. O mais construtivo é aprender com os fatos — e se Borba Gato existe enquanto estátua, é porque existiu na vida real.

“Os bandeirantes eram uma maneira de São Paulo superar outras capitais. São Paulo era mais pobre, não tinha igrejas nem fortalezas, mas tinha esses ‘heróis’”, diz o historiador e professor do Museu Paulista, Paulo Garcez Martins. “Era uma espécie de resposta de artistas, intelectuais e políticos para enaltecer o passado colonial paulista. E é a partir dessa construção imaginária que o bandeirante vai assumir a persona de herói”. Ao longo da jornada humana sempre se queimou ou se derrubou símbolos de outras épocas, mas esse movimento cresceu consideravelmente após a selvageria de um policial branco sufocar até a morte o preto George Floyd, na cidade norte-americana de Minneapolis. Os protestos e o movimento “Black Live Matter” espalhou-se por todo o mundo. Nos EUA, a estátua de um dos símbolos da escravatura, o general Robert E. Lee, estava na cripta do Capitólio. Foi tamanha a pressão popular, que o monumento acabou removido para um museu — melhor do que ser destruída, porque, em um museu, as novas gerações podem olhá-la e aprender sobre a iniquidade do preconceito racial. Mais: podem aprender sobre a Guerra da Secessão americana.

“É preciso entender a complexidade humana. A história é lugar de embate e confronto” Victor Missiato, doutor em história e professor do colégio Mackenzie, em Brasília (Crédito:Sergio Dutti / ISTO É)

Outros dois exemplos marcantes envolveram as estátuas de Cristovão Colombo, descobridor da América, e de Edward Colston, comerciante britânico de escravos. Os monumentos de Colombo foram destruídos em diversos países; o monumento de Colston foi jogado em um porto da cidade inglesa de Bristol. “O ideal é que sociedade civil e poder público cheguem, juntos, a um consenso”, diz Tiago Santos Salgado, doutor em História pela PUC e pesquisador do Centro de Estudos de História da América Latina. “Monumentos podem ser levados a museus, e, ao lado deles, ter placas explicativas. Outra solução seria também esculpir esculturas de escravizados e indígenas. Melhor que ficar na discussão polarizada”.