• Assoprador! Assoprador!

Os gritos de Mineirinho se tornavam mais intensos mesmo que abafados pelo crepitar das chamas. Meus olhos ardiam com a fumaça, a sensação térmica era de 50 graus e a noite escura pintada de laranja pela luz das labaredas. De repente meu maior pesadelo se tornou realidade, olhando a minha volta percebi que estava cercado pelo fogo infernal que fustigava o Pantanal.  Se fosse um filme de Hollywood esse era o momento da aparição milagrosa e improvável dos heróis, ou dependendo do roteirista, o momento do flashback que explica como o protagonista foi parar aí, antecipando o desfecho da situação. Acreditem se quiserem, apesar de não ser um filme, os heróis apareceram, mas como sou personagem e roteirista dessa matéria, antes vou explicar como fui parar naquela situação.

Sou documentarista de natureza e o Pantanal é parte da minha vida desde que aos 18 anos, ao concluir o ensino médio, o visitei pela 1a vez e fiz o pacto comigo mesmo que passaria a vida mergulhando e documentando natureza. De lá para cá filmei em todos continentes e todos os oceanos, mas em nenhum lugar trabalhei tanto quanto o Pantanal, para onde fiz 42 viagens. Pude acompanhar detalhadamente o ciclo anual de seca e cheia em 3 ocasiões e hoje me arrisco a dizer que conheço bem esse mundo de águas. Eu estava buscando locações para um filme de cinema na região da Serra do Amolar quando em 11 de março foi decretada a pandemia e tive de voltar a SP. Na ocasião pude constatar muitos focos de incêndio, apesar de teoricamente estarmos no pico da estação cheia, algo de muito errado já estava acontecendo.

Lawrence Wahba/Divulgação

Quando em agosto me deparei com as noticias e vi a intensidade do fogo que assolava o Pantanal, procurei meu amigo Coronel Ângelo Rabelo, diretor do Instituto Homem Pantaneiro, e juntos criamos uma campanha de financiamento coletivo para manter uma Brigada anti-incêndio permanente no Alto Pantanal, região de suma importância para conservação da onça-pintada e para o ecoturismo. Antes mesmo que a campanha fosse concluída o IHP recebeu um prêmio da UNESCO e o aplicou na compra de equipamentos de combate a incêndio para os brigadistas comunitários que eles treinaram entre funcionários, colaboradores e ribeirinhos das vizinhanças. Embarquei ao Pantanal junto com o biólogo Hugo Fernandes para documentar a situação do fogo, os esforços para apaga-lo e o cotidiano dos brigadistas, veterinários e voluntários, heróis sem medalhas que estão na linha de frente. Percorremos mais de 2.000km no Pantanal por terra, água e ar e testemunhamos histórias inspiradoras.

Começamos nossa jornada no Refúgio Ecológico Caiman, que teve 60% de sua área queimada em 2019, para registrar a resiliência e poder de recuperação do Pantanal. Fazia 20 anos que eu não visitava essa fazenda modelo por conciliar produção pecuária, ecoturismo sustentável e pesquisa científica. Acompanhei o trabalho do projeto Onçafari e fiquei feliz de voltar a esse paraíso. O que eu não podia imaginar é que depois de lá faríamos uma jornada ao inferno. Cruzamos a BR 262 até Corumbá e na manhã seguinte eu e Hugo pegamos carona até a fazenda Acurizal na Serra do Amolar num pequeno avião que estava levando suprimentos a bombeiros e brigadistas. Do ar a fumaça dos incêndios me impressionou, o piloto Francisco Boabaid, de tradicional família pantaneira, disse que em 46 anos de vôo nunca viu incêndios como esse.

Mal aterrissamos e um “piloteiro” nos esperava para nos levar de “voadeira” ao Parque Nacional do Pantanal. A medida que o veloz barco de metal serpenteava as curvas do rio Paraguai o horizonte ficava mais esfumaçado. Assim que entramos no rio São Lourenço (ou Cuiabá) um bafo quente anunciou que onde havia fumaça, agora tinha algumas pequenas chamas isoladas. Chegando na sede encontramos um destacamento de brigadistas do ICMBio reforçado por uma unidade do corpo de bombeiros de Maringá – PR, comandada pela tenente Luisiana Guimarães Cavalca, de 36 anos. Após apresentar a devida autorização, pois estávamos numa Unidade de Conservação Federal, pudemos entrevistar bombeiros e brigadistas.

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A primeira entrevistada, a tenente Luisiana, me disse que sempre quis ser bombeira e que estava ali por acaso. Num primeiro momento seu marido, também bombeiro, é quem iria ao Pantanal, mas de última hora ela que foi convocada. O marido se prontificou a ficar com os filhos pequenos e ela parecia orgulhosa de sua missão. Apesar do rosto coberto por uma máscara, Luisiana sorria com os olhos a medida que contava a missão de salvamento executada na véspera. Ela recém chegara e o incêndio parecia controlado. O foco seria o rescaldo e o trabalho preventivo de construir aceiros… mal imaginavam eles que assim como eu, eles fariam uma viagem sem escalas do céu ao inferno.

Lawrence Wahba/Divulgação

O tenente Pedro Rocha de Faria contava com a voz emocionada como salvou do fogo o indígena guató Vicente Manoel da Silva, de 79 anos, que vive isolado no entorno do Parque Nacional com 30 gatos. O jovem tenente falou que em dez anos de corporação nunca havia vivido uma situação tão dramática. As labaredas cobriam a copa das árvores e se aproximavam assustadoramente da casa mas retiraram seo Vicente a tempo e com uma moto-bomba e mangueira usaram a água do rio São Lourenço para apagar o incêndio.

Eu estava tão absorto com os feitos heroicos que Pedro contava que não percebi que comecei a tossir e que a atmosfera estava esfumaçada, foi então que ouvi pela 1a vez o grito maldito que iria me atormentar nos próximos dez dias: Fogo! Foooogo! Fogoooo! Um brigadista do Prevfogo de uniforme amarelo avisava que na margem oposta um grande fogo se aproximava perigosamente.

Não podia acreditar nos meus olhos, fazia meia-hora que havíamos chegado e o que eu via na margem oposta do rio era algo difícil de entender… vindas não sei de onde as labaredas cobriam a copa das arvores e vomitavam uma densa fumaça preta na atmosfera.

Os bombeiros pularam num barco e nós os seguimos de outro barco. Eles prepararam a mesma motobomba que salvou a casa de seo Vicente na véspera, mas ela não funcionou, então decidiram atacar o fogo por terra, com bombas costais e abafadores. Saltei para margem com minha câmera fotográfica e acompanhei a batalha a poucos metros de distância. O tenente Pedro marcava o limite que eu podia me aproximar quando meus pés começaram a doer. Olhei para baixo e entendi o que é o famigerado fogo subterrâneo do Pantanal. Sobre o solo há um acúmulo de matéria orgânica em cinzas após o incêndio, mas basta um ventinho para essa cinza se transformar em brasa e a brasa em chamas… o fogo renascia embaixo de meus pés mas um dos bombeiros jateou água de uma bomba costal permitindo que eu ficasse em pé naquele ponto. De repente percebi que minha câmera estava tão quente que não conseguia mais segura-la e ouvi os gritos de recuar… o fogo subindo, o som tenebroso do crepitar… tivemos que pular do barranco no barco. Os tenentes Luisiana e Pedro debatiam sobre a nova estratégia quando veio um pedido de socorro. Por acaso era Hugo quem respondeu no nosso rádio uma ribeirinha dizendo que o fogo estava chegando em sua casa. Ao saber da localização nosso barqueiro disse não tínhamos gasolina para acompanhar os bombeiros, assim os heróis de laranja desapareceram no horizonte para cumprir seu destino de salvar vidas…

Impressionado com o poder do fogo fiquei fotografando do barco quando percebemos que o fogo havia cruzado o rio. O clima estava tão seco que fagulhas das folhas mais altas rodopiaram por cima dos cerca de 100 metros de largura do rio e incendiaram a margem oposta. Avisamos a sede do Parque e voltamos para a fazenda Acurizal de onde embarcamos a Corumbá. De noite eu e Hugo passamos mal e precisamos receber oxigênio puro do SAMU já que apresentamos sintomas de intoxicação por monóxido de carbono.

Na manhã seguinte, totalmente recuperado, subi para a Fazenda Novos Dourados com o grupamento de brigadistas do IBAMA/ PREVFOGO de Corumbá. Eram 8 homens de origem humilde: catador de isca, sitiante, pescador, pedreiro, apicultor… todos dependem muito do salário temporário de pouco mais de mil reais, que é acrescido de diárias quando trabalham fora de casa. No caminho paramos na Escola Jatobázinho, cujo entorno pegou fogo duas vezes e deu muito trabalho. Um dos brigadistas disse uma frase que ouvi pela primeira vez: “O fogo parece um “S”, onde ele passa e não queima, ele volta para queimar como se tivesse vida própria”.

Ao nos aproximarmos da Nova Dourados, já à noite, o horizonte lembrava um filme de terror: uma linha de fogo de cerca de 3km de extensão tomava conta da morraria da Serra do Amolar. Eu estava chegando na porta do inferno.

Desci no pontal flutuante e subi ofegante o lance de escadas íngreme carregando minha bagagem. A primeira cena que vi foi o veterinário Diego Viana inconsolável. Sobre uma gaiola de transporte ele tentava tratar de uma capivara com as patas queimadas em carne viva… sem anestésicos injetáveis Diego assistia impotente a capivara ter espasmos de dor até que o animal entrou em óbito. Lágrimas escorriam meus olhos, a sensação de impotência frente a tamanho sofrimento do animal abala o psicológico de qualquer um.

Mal tive tempo de fotografar a capivara morta e os brigadistas do PREVFOGO me chamaram, chegou a hora do combate. À medida que caminhávamos 8km noite adentro em direção ao fogo eu via na prática os equipamentos que teoricamente conhecia: bomba costal, assoprador, abafador, gorgui ou enxada… cada qual com sua utilidade. Os homens do PREVFOGO são como um batalhão de elite no combate aos incêndios, mas para seu trabalho ser mais eficiente ele é reforçado pelos brigadistas comunitários da Brigada Alto Pantanal, que trabalham no IHP e conhecem a região como ninguém. Aprendi que o combate é feito prioritariamente a noite porque é mais fresco, o fogo é mais visível e com menos vento viaja mais lentamente.


Lawrence Wahba/Divulgação

A caminhada foi longa, uma anta galopando em pânico vinda de para onde íamos anunciou que a coisa estava feia. Finalmente chegamos ao ponto em que estava estacionado um trator com uma caixa de água de mil litros e alguns brigadistas exaustos comemoraram a chegada de reforços. Os brigadistas locais discutiam estratégias com o PREVFOGO até que definiram que Joel Miguel Camilo, o Mineirinho, iria liderar um grupo morro acima que tentaria evitar a expansão de uma linha de fogo. Por acaso Mineirinho, brigadista experiente que trabalha como guia de trilhas no Parque na Tijuca no Rio, estava mapeando trilhas para o IHP quando o fogo chegou. Qualificado por 3 cursos de brigadista, chefe de brigada com 12 anos de experiência e conhecedor das trilhas que estava mapeando, virou guia. Abandonamos a estradinha principal e entramos numa trilha estreita na mata.

Ao seguir os brigadistas o som dos assopradores, espécie de aspirador ao contrário que serve para soprar para longe folhas secas e gravetos altamente combustíveis; se junta ao calor, a poeira e a fumaça… a garganta seca, os olhos ardem, o medo tenta tomar conta da gente… e o inferno se materializa.

Nisso vejo uma espécie de salão se abrir na mata a minha esquerda. O fogo marcava o chão em meias luas; subia as folhas secas das palmeiras de acuri e cuspia brasas como as que eu havia visto cruzarem o rio São Lourenço na noite anterior. Parecia o cenário de um ritual satânico. Atrás de cipós em chamas eu vejo uma lanterna e ouço, abafado pelos uivos do fogo, a voz de Mineirinho:

  • Assoprador, assoprador!

Ele havia me confundido com um dos brigadistas, pois eu estava usando uma gandola (uniforme com tecido reforçado para defender do fogo) e entrou com tudo para apagar o fogo e foi cercado. De onde eu estava ainda havia saída para a trilha, eu precisava chamar reforços, então ecoei seus gritos:

  • Assoprador, assoprador…

Então dos heróis chegaram, a equipe do PREVFOGO! Faltou a música épica na trilha sonora, mas o zumbido ensurdecedor dos assopradores fez a função. Uma brigada treinada para combater o fogo com a sincronia de uma orquestra, cada instrumento fazendo sua função, apagando chamas e trazendo o alívio da escuridão. Porém tal qual o dragão de “Game of Thrones” a batalha é desproporcional… por mais que os heróis lutem, o fogo sempre é maior.

Não havia como vencer. Exausto e assustado voltei caminhando sozinho pela mata, tão chocado que nem medo consegui sentir. Só sentia um gosto ruim na boca seca, apesar de ter o ar filtrado pela minha máscara respiradora, era um gosto de morte. Cheguei no alojamento, tomei um banho e não consegui dormir. Virei na cama até as 3am, até que desfaleci.

Acordei assim que o sol nasceu e voltei para o mesmo lugar. Aparentemente nossos heróis venceram a batalha às custas de muitas vidas. O cenário era desolador: a mata seca, galhos queimados, uma camada de cinzas cobrindo o chão… cheguei até ao que restou de uma lagoa na pior seca dos últimos 47 anos. O solo rachado, esqueletos de peixes ao sol… repteis e anfíbios ressecados… as sucuris que não morreram fritas pelo fogo, morreram cozidas na lagoa rasa. Outra capivara com as patas queimadas agonizava… Não podia ser verdade, mas era… sabe aquela sensação de estar vivendo um pesadelo? Ali onde eu mergulhara em março, naquele Pantanal profundo de paisagens majestosas e alagadas da Serra do Amolar… eu só via seca e morte.

Logo chegam até a Lagoa Diego e Sérgio do IHP junto a veterinária Ana e aos biólogos Alan e Leandro da ONG Gaiola Aberta. Heroicamente eles trabalham mesmo com o sol esquentando e levando a sensação térmica de 45 graus. Alan acha uma sucuri viva enterrada na lama, parece desidratada, mas é levada para tratamento. Ana chora, engole as lágrimas e cerca uma capivara com Diego… o animal ferido consegue escapar, mas não há tempo para lamentar derrotas.

Quando o pesadelo parece não poder piorar, ele piora. O sol alto revitaliza as chamas, nos morros queimados dezenas de “chaminés” de fumaça anunciam que o inimigo não morreu. O fogo está de volta. O cenário é infernal, mas apesar da dor e da tristeza percebo que não estou sozinho. A vitória é impossível, mas um esquadrão de anjos em forma humana luta para combater o fogo, minimizar o sofrimento e salvar vidas de animais. Cada vida importa!

 

 



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