FRUSTRAÇÃO A presença de apoiadores no Sete de Setembro
foi menor que a esperada em Brasília (Crédito:JAKE SPRINGS)

Bolsonaro queria transformar o Sete de Setembro no ensaio geral do seu golpe de Estado. Conseguiu o contrário. O caminho sem volta do presidente rumo à ruptura institucional fez entidades da sociedade civil se mobilizarem e já provocou uma união que tem tudo para lembrar o Diretas Já, movimento suprapartidário nos anos 1980 que sedimentou a redemocratização e lançou as sementes da Constituição de 1988. No domingo, 12, mesmo palco da manifestação bolsonarista, partidos, personalidades e centrais sindicais comparecerão para exigir a única medida capaz de brecar o putsch: o impeachment.

NÚCLEO DURO Ciro Nogueira (Casa Civil) e o presidente da Câmara, Arthur Lira, ainda tentam conter as investidas do presidente (Crédito:Mateus Bonomi )

As manifestações convocadas pelo presidente no Sete de Setembro tiveram pelo menos esse mérito: deixaram claro que não há mais possibilidade de diálogo para conter os ataques do presidente às instituições. Em discursos agressivos em Brasília e São Paulo, o mandatário disse com todas as letras que não respeitará as eleições de 2022 (usando a desculpa do voto eletrônico), afirmou que não acatará mais decisões do STF (se elas contrariarem seu interesse) e ameaçou a própria Corte se o seu presidente não “enquadrar” ministros (referência a Alexandre de Moraes, chamado de “canalha”). Não foi um ato cívico. Foi um chamamento ao golpe. “A partir de hoje uma nova história começa a ser escrita no Brasil. Peço a Deus mais que sabedoria, força e coragem para bem decidir”, disse. Apesar do tom triunfal, a festa foi menor do que os bolsonaristas esperavam: 150 mil pessoas em Brasília, 125 mil em São Paulo. O risco de cooptação de PMs e militares não se concretizou. Grupos de apoio ao presidente, como evangélicos e caminhoneiros, também tiveram um comparecimento inferior ao sonhado pelo governo. Por fim, os mais radicais se decepcionaram com o discurso “moderado” do presidente. Não ouviram a palavra de ordem pela invasão do STF e do Congresso. As escaramuças se resumiram nos arredores da Praça dos Três Poderes à invasão de carros, que furaram o bloqueio da Polícia Militar. No dia seguinte, um grupo de cerca de 100 caminhões ainda permanecia estacionado em tom intimidador, uma horda tentou invadir o Ministério da Saúde para perseguir jornalistas e caminhoneiros desgarrados tentavam bloquear rodovias em 16 estados do País.

ALGOZ Relator de inquéritos que investigam bolsonaristas, o ministro Alexandre de Moraes foi chamado de “canalha” pelo presidente (Crédito:Pedro Ladeir)

A gravidade dos fatos fez a agenda política do País mudar. Este Sete de Setembro foi um divisor de águas, mas não no sentido desejado pelo governo. O mandatário perdeu o benefício da dúvida sobre suas intenções. Como não haverá transição pacífica de poder com ele, a sociedade passou a se mobilizar. A liderança, mais uma vez, coube ao Judiciário. O presidente do STF, Luiz Fux, fez um dos discursos mais incisivos da história da Corte. “Ninguém fechará esta Corte. Nós a manteremos de pé, com suor e perseverança”, disse, encarnando o espírito de Winston Churchill. O que chamou a atenção foi a ênfase, já que, em substrato, Fux foi obrigado a reafirmar obviedades, como o fato de que o presidente comete um crime de responsabilidade ao ameaçar o funcionamento do Judiciário (artigo 85 da Constituição), que leva à perda do cargo. Nenhuma novidade, já que Bolsonaro tem praticado um passeio pelo código penal e preenchido todos os requisitos para sofrer um impeachment. Fux mostrou que ele continuará a enfrentar uma ofensiva judicial rigorosa, que já inclui quatro investigações contra ele no STF e duas no TSE. Por isso, o presidente afirmou aos berros na avenida Paulista: “Eu nunca serei preso!”. Aí está seu verdadeiro pavor.

RECADO Provável candidato em 2022, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, vai devolver MP inconstitucional ao Executivo (Crédito:Cristiano Mariz)

O terremoto político paralisou o Congresso. “O ano legislativo acabou”, sentenciou o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL). Para ele, é inevitável a abertura do processo de impeachment do mandatário. Essa discussão dominará o Legislativo a partir de agora, contra a vontade de Arthur Lira, o líder do Centrão eleito para a presidência com apoio do presidente. O próprio grupo fisiológico pode rachar. Apenas o núcleo do PP que mais se beneficiou com cargos, verbas e orçamentos secretos, incluindo o próprio Lira, Ciro Nogueira (chefe da Casa Civil) e Ricardo Barros (líder do governo na Câmara) tende a se manter fiel ao presidente.

Isso explica a reação anódina do presidente da Câmara às manifestações, mesmo que tenha sido pressionado. Ele ensaiou uma crítica ao presidente, sem citá-lo, tentando atribuir a crise ao excesso de “bravatas nas redes sociais”. “É hora de dar um basta a essa escalada “, disse. E acrescentou: “A Câmara dos Deputados apresenta-se hoje como um motor de pacificação”. Trata-se de um embuste. Ao contemporizar com o mandatário e não se colocar na trincheira em defesa da democracia, Lira, na prática, alimenta a tentação golpista de Bolsonaro e agrava as múltiplas crises que o País atravessa. Torna-se na prática um dos grandes responsáveis pelo caos em que o País mergulha.

TENSÃO Indígenas acampados em Brasília assistem ao pronunciamento do presidente do STF, Luiz Fux, no dia 8 (Crédito:Mateus Bonomi )

“Ninguém fechará o STF. Desrespeitar a Justiça é crime de responsabilidade” Luiz Fux, presidente do STF

Igualmente pífia foi a manifestação do Procurador-Geral da República, Augusto Aras: “Acompanhamos uma festa cívica com manifestações pacíficas. Elas foram a expressão de uma sociedade plural e aberta, características de um regime democrático”. É uma declaração escandalosa, já que cabe ao PGR exatamente a função de defender a democracia em nome da sociedade. Ao contrário, ele tem agido para blindar o presidente. Por causa disso, o senador Randolfe Rodrigues e o PDT apresentaram notícias-crime ao STF pedindo que ele cumpra sua função investigando as ameaças feitas à Corte.

Mais firme foi o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ele pretende devolver ao Executivo a Medida Provisória enviada na véspera do Sete de Setembro que impede as redes sociais de excluírem conteúdo de ódio ou desinformação.

É uma MP inconstitucional. Ao devolvê-la, Pacheco dá um recado. Ele inclusive cancelou sessões previstas do Senado em função da gravidade do momento. Um interlocutor afirmou que ele está se sentindo isolado nas respostas aos ataques de Bolsonaro e acredita que as reações tendem a aumentar a partir de agora, porque o presidente deu sinais claros de que as eleições estão de fato ameaçadas. “Os parlamentares têm projetos políticos, querem disputar as eleições no ano que vem. Só o Pacheco respondendo não vai adiantar. Mas isso vai mudar a partir de agora”, confidenciou o aliado. Com ele concorda o cientista político Rubens Figueiredo: “Bolsonaro quer colocar em dúvida o resultado das eleições, que são a razão de ser dos políticos”.

A conclusão é que o presidente está num caminho sem volta. Ao perceber o estrago que a manifestação provocou, ele recuou e divulgou uma nota na quinta-feira dizendo que “nunca teve a intenção de agredir quaisquer dos Poderes”. O texto, claramente em contraste com as suas palavras usuais, fala em harmonia e mostra respeito ao ministro Alexandre de Moraes. Fez isso após se reunir com o ex-presidente Michel Temer. Esse aceno de paz, como sempre, não deve ser duradouro. Nenhum político acredita em uma nova atitude. Por isso, partidos já mudaram suas estratégias. Vários que integram o Centrão avaliam endossar o impeachment, caso do PSD, Solidariedade e MDB. O PSL e o DEM, que negociam sua fusão, divulgaram uma nota com críticas ao presidente. Um fato significativo, já que o PSL é o próprio partido que elegeu Bolsonaro e ainda abriga deputados da base governista. Apesar de não endossar imediatamente o impeachment, o PSDB de João Doria finalmente se declarou em oposição a Bolsonaro. É um desenvolvimento que favorece o governador paulista, pois isola a ala ligada ao deputado Aécio Neves, que aderiu ao bolsonarismo.

MOBILIZAÇÃO Vídeo que pede o impeachment e antecipa os atos contra o presidente. A manifestação do dia 12, na av. Paulista (SP), virou suprapartidária

Não são apenas os políticos que estão incomodados. O Sete de Setembro também representou um ponto de inflexão para empresários, agentes e investidores. Nunca ficou tão claro que o maior obstáculo para a recuperação econômica é o próprio presidente. Ele fez evaporar a confiança na retomada dos negócios. Apenas no “day after” das manifestações, a Bolsa despencou 3,78%, fazendo as empresas perderem R$ 195 bilhões em valor de mercado. O dólar disparou 2,93%, maior alta desde junho de 2020, fechando em R$ 5,32. Ao implodir as pontes com o Judiciário, ele também inviabilizou pautas de seu interesse, que agora serão travadas ou tendem a ter um desfecho desfavorável. “Bolsonaro escalou a insegurança jurídica para além da política. Aumentou o temor dos investidores e terminou de comprometer a recuperação do PIB. E, obviamente, isolou-se ainda mais”, resume o cientista político Antônio Lavareda.

A percepção de isolamento internacional pode ser facilmente observada. O espetáculo golpista alarmou o mundo e virou manchete em vários jornais, como o “New York Times” e o “The Guardian”. Antes do dia 7, o governo americano emitiu um alerta de segurança a seus cidadãos no Brasil. O governo Joe Biden teme a possibilidade de uma ruptura. Não passa em branco aos americanos as tentativas desesperadas de Bolsonaro de se aproximar de antigos auxiliares do ex-presidente Donald Trump, como Jason Miller, que foi interrogado em Brasília pela PF no próprio Sete de Setembro (foi ouvido dentro do inquérito que apura a organização e o financiamento das manifestações antidemocráticas).

Tudo isso torna Bolsonaro um dos líderes mais desprezados no cenário internacional e, o Brasil, um dos países mais isolados. Personalidades e ex-presidentes de mais de 25 países vocalizaram o temor com um retrocesso autoritário. “Nós, representantes eleitos e líderes de todo o mundo, estamos soando o alarme: em 7 de setembro de 2021, uma insurreição colocará em risco a democracia no Brasil”, escreveram. A carta foi assinada por nomes de esquerda como o ex-chefe de governo espanhol José Luis Rodriguez Zapatero e o ex-presidente da Colômbia Ernesto Samper. No Brasil, entidades como CNBB, OAB, ABI, SBPC, ABC e a Comissão Arns fizeram o mesmo alerta: “A apropriação da nossa data cívica por indivíduos obstinados em semear divisões entre os brasileiros, disseminando o ódio e a intranquilidade para dar passagem a um projeto político de viés personalista, declaradamente autoritário, deve ser repudiada por toda a sociedade”.

A reação já está em curso. O grupo Direitos Já, que reúne 18 partidos e dezenas de movimentos da esquerda à direita, anunciou mobilizações pelo impeachment. Em reunião no próprio dia 7 que teve representantes do PT, PSDB e de pelo menos mais cinco partidos foi definida a organização de eventos a partir desse mês, com o objetivo de unir personalidades políticas, intelectuais e nomes de peso como os ex-presidentes Lula e FHC. A meta é fazer uma grande manifestação que coincida com a entrega do relatório final da CPI da Covid. Um grande teste acontecerá neste domingo (12). Movimentos de renovação política que se destacaram em 2018 como MBL, Agora e Acredito haviam convocado um ato neste dia que buscava estimular a “terceira via” no pleito de 2022. Agora, esse movimento passou a unir todas as forças políticas e terá como mote o pedido de impeachment. “O ato ganhou uma dimensão maior, queremos um palanque mais próximo do que houve nas ‘Diretas Já’. A gente deseja uma manifestação de pauta única com a cor branca para reafirmar a neutralidade política, que seja uma manifestação pela democracia”, diz o deputado Kim Kataguiri (DEM).

O PDT, Novo, Cidadania, PSDB e o diretório paulista do PSL já anunciaram a adesão à manifestação do dia 12, que terá ainda a participação de representantes do PCdoB, PSOL e quatro centrais sindicais. O pré-candidato à presidência Ciro Gomes confirmou a participação. “Precisamos reunir todos os democratas, quaisquer que sejam as nossas diferenças, para proteger a democracia”, afirma. Poderá estar ao lado de Luiz Henrique Mandetta e João Doria. Esse impulso pode ser o elemento que falta para mudar a dinâmica política em Brasília. Pessoas próximas do presidente da Câmara disseram que ele aguarda o nível de mobilização desse e dos próximos atos. Se a adesão for grande, Lira terá o elemento que ele próprio dizia faltar para analisar os 130 pedidos de impeachment que tem em suas mãos: a força das ruas. Não é o que esperava, mas pode ser atropelado pelos acontecimentos.

Colaboraram Eudes Lima e Ricardo Chapola