Se o novo coronavírus, segundo especialistas, poupa as crianças nas vias aéreas superiores e nos pulmões, abala em outro delicado campo suscetível de sequelas: o lado emocional. ISTOÉ conta a história de uma família que passa a quarentena no Complexo do Alemão, uma das maiores e mais conhecidas favelas do Rio de Janeiro. Como a doença não diferencia ricos e pobres, da boca do caçula da família Silva sai a frase que amedronta os pais, sejam miseráveis ou milionários, em todo Brasil: “Mãe, a gente vai morrer?”. A pergunta não é feita por um adulto ou adolescente, mas, sim, por uma criança de seis anos, invadida pela morbidez em seu psiquismo. O cenário em que o País vive é esse: crianças deixaram a brincadeira de lado e estão confinadas em casa, apavoradas. A regra clássica de que criança precisa ser criança não dá para ser respeitada. Uma geração inteira será afetada emocionalmente; os resultados são incertos e preocupantes.

“Uma coisa que eu sempre digo, para qualquer situação, é: não dê informações além do que a criança pede” Daniella Dualib Uvo, psicóloga especializada em neuropsicopedagogia (Crédito:Divulgação)

A gente vai morrer?

João Gabriel tem seis anos, mas quando de sua boca sai incômodos e medos sobre o contágio do coronavírus, ele já não parece mais tão pequeno. Da televisão da sala, ele vê reportagens e o corpo estremece: “Não tem hospital para todo mundo, mãe”. Depois de olhar para os parentes confinados, João completa: “Já pensou se a nossa família pega? A gente vai morrer!”. Um tormento que, antes da pandemia, não existia. Quando da rua as vozes dos amiguinhos aparecem, João pede para sair. Quer a rua. Quer brincar. “Deixa eu ficar com os meus amigos?”. Mas, logo em seguida, Joelma da Silva, de 29 anos, ativa a memória do filho sobre a existência da doença. Ainda assim, João não arreda o pé e quer saber: “Não posso brincar porque meus amigos estão com coronavírus?”. Joelma tenta, mais uma vez, explicar a situação do País. Só que parece que na frente dela está um homem maduro e não um menino de seis anos. A Covid-19 está fazendo crianças agirem como idosos. Só que idosos já viveram muito, têm bagagem para questionar a vida. Sozinho, João escolheu como melhor amigo o álcool em gel — carrega-o para todos os cantos da casa.

Joelma está em quarentena com o caçula João, com a filha mais velha, Maria Gabrielle, de 11 anos, e o pai José Manuel de 66 anos. Dentro da casa ninguém entra e ninguém sai. O pouco de mundo exterior está no quintal, mas basta as crianças saírem para movimentar o corpo que, pouco depois voltam correndo. “O vírus está na minha mão, passa álcool”, pedem. A vida meio que perdeu a rotina. E a tentativa de se agarrar na possibilidade está no potinho que promete a morte do vírus. Enquanto os amigos brincam na rua, João passa álcool em gel nas mãos com a mesma fúria que engole balas coloridas. A escola colocou no dever de casa uma perigosa pergunta: “Como você está se sentindo com o coronavírus?”. Um universo intacto é escancarado. “Você está entrando em um território de sentimento que pode aflorar diversas coisas nas crianças, inclusive essa questão das perdas e morte”, explica a psicóloga da Clínica Maia, especializada em neuropsicopedagogia, Daniella Dualib Uvo. “Uma coisa que eu sempre digo, para qualquer situação, é: não dê informações além do que a criança pede”, completa.

A natureza infantil é curiosa e inquieta. Quando a dúvida surgir, as crianças vão perguntar. Eles têm o conhecimento da existência de uma doença e que essa doença mata. Para eles, é como dizer que alguém próximo pode morrer. Estresse pós traumático, ansiedade, fobia social, problemas para lidar com a frustração, e, obviamente, com as perdas. Os pais que, da noite para o dia, passaram a trabalhar em casa, também voltarão para o trabalho da noite para o dia. Assim que eles deixarem a casa, as crianças podem se ver em pânico com a possibilidade de os pais não cruzarem novamente a porta de entrada. A família precisa, de alguma forma, estabelecer uma rotina. Daniella é otimista, gosta de dizer que prefere enxergar o copo mais cheio do que vazio. E esse confinamento, pode, sim, ser positivo para essa geração. De alguma forma, as famílias desaceleraram.

A falta de convívio virou acolhimento. “Há um fortalecimento emocional incrível”, diz a psicóloga. Em meio ao caos, a pequena Maria Gabrielle parece ser a única da família Silva que conseguiu transformar a quarentena em rotina. Agarrou-se aos tutoriais de maquiagem para fazer o tempo passar. Quando tudo isso acabar, ela tende a ser mais experiente do que mulheres adultas acostumadas com a base, o pó e a sombra.