Ignácio de Loyola Brandão não gosta da ideia de que suas lembranças e as histórias que viveu caiam no esquecimento – dele, inclusive. Por isso também, ele escreve. Mas garante que faz isso tudo sem nostalgia e que jamais entraria na máquina do tempo e voltaria para a Araraquara da sua infância e juventude. “Meu tempo é esse”, afirma.

O mundo era pequeno, tudo era proibido. Não havia diversão em sua cidade, tão cheia de preconceito. Nem telefone, ele reclama. “Gosto de fazer essa memória para não perder essas coisas”, diz. Mas Ignácio, nascido em 1936, viu esse mundinho crescer e se tornar global. O homem pisou na lua, Elvis, Beatles e Rolling Stones surgiram, o computador foi criado, todo mundo passou a andar com um telefone no bolso. Viveu a ditadura e a democracia, mas nunca, porém, nesses 80 anos que completa no domingo, 31, viu tanto ódio, incompreensão, agressão e despautério como vê nesses dias tão complicados.

E a perplexidade despertada pelo momento atual o levou a fazer algo que não fazia há 10 anos: escrever um romance. Era com Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela que ele queria comemorar o aniversário, mas não gostou do rumo que a história estava tomando, recomeçou do zero e não pôde terminar. O livro novo não faz exatamente uma reflexão sobre o Brasil de hoje, mas reflete esse país que vem assombrando o escritor.

É a volta do autor dos emblemáticos Zero (1975), que vendeu 900 mil exemplares, e Não Verás País Nenhum (1981), mais de um milhão de cópias comercializadas, ao romance situado num país tentando superar questões urgentes – a ditadura, no caso do primeiro, o meio ambiente, no do segundo, e de tudo um pouco – corrupção, terrorismo, refugiados, etc. – no romance prometido para 2017.

Antes disso, porém, apresenta Se For Pra Chorar Que Seja de Alegria (Global), com uma seleção de crônicas, quase todas publicadas no Caderno 2. O lançamento será nesta quarta-feira, 27, às 18h30, na Livraria Martins Fontes (Av. Paulista, 509). Este é só o começo dos festejos. No domingo, Ignácio e sua filha Rita Gullo fazem o show Solidão no Fundo da Agulha, em que ele conta seus causos e ela canta as músicas que o remetem àquelas histórias. O encontro ocorre no mesmo local, a partir das 13 horas, quando ele faz nova sessão de autógrafos. Às 16h30 haverá um coquetel e o show.

Cronista do jornal O Estado de S. Paulo há 23 anos, Loyola Brandão acaba de ganhar o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, no valor de R$ 300 mil, pelo conjunto da obra. É o triunfo do escritor que queria ser cineasta – sonho realizado pelo filho. Mas eram outros tempos e ele, que foi também jornalista, descobriu como era gostoso escrever romances e contos.

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“Eu tinha tesão de sair correndo do jornal, voava para a pensão e batia a máquina a noite inteira. Eu não tinha um projeto literário; só queria escrever a história que estava na cabeça. E eu também gostava de fingir que era escritor. Os amigos chamavam para sair e eu, sem um tostão, dizia: ‘Hoje eu não posso, estou escrevendo’. Eles achavam lindo.”

Ignácio conversou com o Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo sobre literatura, memória, tempo, a influência do pai e muito mais. Leia a seguir trechos da conversa.

São 80 anos de vida, 51 desde a publicação da primeira obra e muita história para contar. Devem cobrá-lo por um livro de memórias, mas não é isso o que o senhor vem fazendo nas crônicas?

Sempre. Mas nunca vou escrever isso, não tenho nada o que dizer. Mesmo porque na biografia não posso inventar e nas crônicas eu invento muito. O que faço é um pouco aquela ‘quase memória’ do Carlos Heitor Cony. Solidão no Fundo da Agulha é uma quase memória.

Esse projeto que inclui livro e show está dando muito certo, não?

Muito. Eu nunca me imaginei indo ao palco para fazer um show. É surpreendente. Tem pessoas de todas as idades. Eu me divirto. E talvez essa entrega minha no palco passe para as pessoas. Já fizemos mais de 100 apresentações.

O passado está sempre presente em seus livros.

É uma memória, mas sem nostalgia. Eu não sou saudosista. Conto coisas que aconteceram no passado, mas não quero voltar. Meu tempo é esse. Era tudo muito chato. Com 20 anos era tudo proibição. Vivi numa cidade sem telefone, sem diversão, cheia de preconceito. O mundo era muito fechado, pequenininho. Gosto de fazer essa memória para não perder essas coisas.

Nada deixou saudade?

Nada. Gosto de lembrar daquilo, mas não tenho saudades. Jamais entraria numa máquina do tempo. Deus me livre. Cada um nasce na sua época, mas eu gostaria de ter nascido hoje. Se bem que o que eu vi foi bem interessante. Vi todas as mudanças, o Elvis Presley, a Brigitte Bardot, os Beatles, Rolling Stones, o homem descer na lua. Vi chegar o celular, o computador. Trabalhei em jornal quando era com linotipo e clichê de zinco e trabalho em jornal hoje com toda essa informática.

Mas por que, então, gostaria de ter nascido hoje?


Sou realista, meu tempo está acabando. Não sei quanto mais vou viver. Mas não vou parar por isso. 80 é uma idade interessante. É gostoso ter vivido o que vivi e ver o que estou vendo.

O mundo, hoje, está mais chato?

Ele está complicado. Nunca vi tanto ódio, incompreensão, agressão, despautério. Nesse Brasil, viramos inimigos um do outro. É um país dividido. Se você for defender uma ideia política, o cara pode te dar um tiro. Eu peguei a Revolução Socialista, que ia mudar o mundo. Não mudou. Hoje, não sabemos o que pode mudar o mundo. Essa impotência é que paralisa. As tais utopias… Cadê? Quais são? O que é política hoje? Eu imagino, nesse livro novo, o parlamento se dissolvendo como uma geleia.

Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela faz uma reflexão sobre o Brasil atual?

Não, só conta. Vai ser meio fábula, meio fantasia, mas com muita realidade.

Poderia falar mais sobre a obra?

O personagem, na casa dos 50, 60 anos, está andando de ônibus por cidades fictícias do Brasil para fugir de um relacionamento. Numa hora, o ônibus quase vazio penetra num túnel imenso. Alguém diz que o túnel é artificial, em uma montanha com todas as palavras inúteis ditas em todos os celulares por todas as pessoas. Depois, o motorista mostra uma obra magnífica feita pelo governo com milhões de dólares, com propina, superfaturamento, num local coberto pela Samarco. Continua andando e entra no setor das delações premiadas. Passa pelo Morro das Lamentações, que comporta todas as acusações: ‘nunca fiz isso’, ‘nunca roubei’. Todos aqueles chavões formam uma cordilheira. Nisso vai tendo o retrato de um país. Quando entro e começo a escrever, a coisa vem vindo. Como a Lava Jato: puxa uma pena e sai uma galinha. E tem muita ironia. Estou adorando, mas não sei o que vai virar.

Ele dialoga com o Não Verás, que foi premonitório?

Não sei. Pode até ser, e tenho que tomar cuidado. Ele se passa num tempo qualquer. Pode ser hoje, e não é hoje. As pessoas se agredindo por nada. O personagem vai pedir uma informação e a mulher sai correndo gritando que vai ser estuprada. E ele vai atrás para tentar acalmá-la. Correm atrás dele. Ele só queria uma informação. Mas o medo está presente o tempo inteiro.

Diz muito sobre o momento.

Eu acho. Está tudo paranoico, e eu também. O terrorismo não está no livro, mas vai entrar porque o mundo ficou paranoico, doido. É um perigo. Os refugiados também vão aparecer. Tenho medo que esse livro nunca acabe.

Já se passaram 51 anos desde sua estreia. O que ainda o atrai na literatura?


Em primeiro lugar, ela é uma grande fuga. Em segundo, não sei direito o que é vida e gostaria de entender por que estamos aqui. Mas faço literatura por uma grande catarse, ela é a minha terapia. Essas coisas estão dentro de mim e ficam saindo. Fico pensando se um dia tudo vai esvaziar dentro de mim.

Gostaria que esvaziasse?

Não! Tenho medo que isso aconteça. Por que eu faço? Tem gente que fala coisas bonitas como ‘porque quero me entender’. Não sei se eu quero me entender. Eu quero tirar. Está cheio de coisa aqui ainda.

E o que a literatura proporciona, hoje, para o senhor?

Alívio. De repente, estou tão carregado e quando ponho para fora, eu gosto. É tão gostoso criar coisas e saber que alguém vai ler, que pode gostar e se divertir. Eu me sinto útil. E quando trago essas memórias, é uma forma de recuperar um momento que foi bom.

Voltando no tempo, a essas memórias. Seu pai foi um grande leitor. Ele foi sua primeira influência?

Sim. Ele foi um grande leitor e comprava livros com um sacrifício enorme. Ele assinava o Estado, via que saía algum livro, dava o dinheiro que economizava para o chefe do trem ou para o maquinista, que comprava em São Paulo e levava para Araraquara. E ele lia, lia, lia. Ele voltava do trabalho na Estrada de Ferro Araraquara (começou como escriturário) às 17h30, picava a lenha para o fogão e, enquanto minha mãe cozinhava, ele ficava lendo na sala. Eu o via lendo e perguntava: ‘É bom, pai?’. Aí ele me contava. Ou às vezes ele ficava meio assim e eu falava: ‘É triste, pai?’. Eu era um moleque chato. Quando comecei a ler, ele pediu livros para uma prima. Foi ele que me deu O Patinho Feio, percebendo que eu me achava feio, e com ele descobri, inconscientemente, que eu podia ser outra coisa. Depois, me fascinei pelo Livro dos Porquês. Eu era um menino que perguntava tudo.

O senhor acaba de ganhar o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Já quis ser imortal?

Nunca me passou pela cabeça, mas esta tem sido a pergunta mais frequente nos últimos dias. Confesso que foi um momento mágico ganhar o Machado de Assis, recebê-lo com pompa. Me fez pensar. É decisão difícil, tentadora. Mais da metade dos acadêmicos é de amigos meus. Mas será a hora? Não seria necessário antes um “namoro”, como me disse uma amiga acadêmica? Frequentá-la mais, conhecer os mecanismos, participar. Amadurecer, primeiro.

Que balanço o senhor faz desses primeiros 80 anos?

Foram bem vividos. Fiz tudo o que eu queria fazer. E tudo o que eu queria fazer era escrever. Vivi disso – como jornalista e depois como escritor. Encontrei uma mulher sensacional, a Marcia. Tive filhos. Já fui muito ansioso e hoje sou menos. A experiência do aneurisma foi fundamental e minha vida é outra depois dele. Não tenho mais pressa.

E tem medo de alguma coisa?

Da morte eu não tenho mais. Sei que ela vai chegar uma hora. Não tenho medo do que vou encontrar lá. Quem sabe há um universo paralelo, outra vida, vida nenhuma? Tenho medo de ter uma longa doença e ir me decompondo. E tenho outro medo, que faz minha mulher e minha filha rirem muito, que é de virar morador de rua e ficar andando com o cobertorzinho para lá e para cá.

O que sobrou daquele menino perguntador?

Ainda sou aquele menino. Eu escrevo esses livros porque eu sou ele. Continuo a ser o menino que vende palavras, que faz perguntas, brinca na enxurrada, sobe em árvore. Eu nunca quis perder a fantasia e a imaginação infantil e acho que consegui não perder muito dela não.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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