É culpa do estrangeiro – Jair Bolsonaro deveria ser convidado para o próximo Foro de São Paulo. Se usar uma barba postiça e fizer o mesmo discurso que apresentou na cúpula dos Brics, ninguém vai achar estranho. Pelo contrário, vão aplaudir quando o presidente puser a culpa pelo desmatamento ilegal na Amazônia em países estrangeiros. Bolsonaro e a esquerda compartilham esse impulso de empurrar os seus fracassos para os malvadões do exterior. É que o impulso, na verdade, não é de esquerda ou direita, mas daqueles que o ensaísta peruano Álvaro Vargas Llosa chamou de “perfeitos idiotas latino-americanos”. Se os Estados Unidos são grandes consumidores de cocaína, então a culpa pela violência dos cartéis mexicanos de drogas é toda dos americanos, certo? O México não têm nada a ver com isso. Se países europeus compram madeira de extração indevida, então a culpa pelo desmatamento é toda deles. Mesmo tendo eliminado fiscalização nos portos, mesmo tendo extinguido certificações de origem, o governo brasileiro não tem nenhuma responsabilidade pelas atividades ilegais que acontecem no seu território. Então tá. O presidente prometeu divulgar uma lista de países que compraram a madeira ilegal. Pode até causar algum constrangimento. Mas não vai eximir o Brasil da cobrança de fazer a sua parte. É isso que o mundo vem dizendo a Bolsonaro e ele finge não entender: mostre que está disposto a fazer a sua parte, mostre que está agindo, e sairemos do seu pé. Em vez disso, o presidente derruba as salvaguardas que existem e faz carranca de ofendido quando lhe apontam o dedo. É patético.

É culpa da empresa – O Amapá sofreu ontem o seu segundo apagão em quinze dias. O primeiro foi resultado de uma negligência. A concessionária Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE) operava há meses com dois transformadores, onde três eram necessários. O equipamento não aguentou. As causas da segunda pane ainda não estão claras, mas parecem ligadas a uma sobrecarga na hidrelétrica Coaracy Nunes. Depois do incidente de ontem, mais rápido de contornar, o Ministério de Minas e Energia e a a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) publicaram notas enfezadas, prometendo investigação e punições. É pouco, principalmente por parte da Aneel, que deveria ter identificado muito antes riscos que não estavam exatamente escondidos, e cobrado as devidas providências. É claro que a empresa privada tem culpa no cartório. Causou e ainda causa enormes prejuízos à população do Estado e especialmente da capital Macapá, que sofre com o racionamento de energia. Mas não se pode deixar barato a responsabilidade da Aneel. Conceder serviços públicos não significa entregá-los à iniciativa privada e virar as costas. É preciso fiscalizar com rigor, o que cabe à agência. Muitos governantes brasileiros não entendem isso, entre eles Jair Bolsonaro, de incompetência infalível. Diante do desastre no Amapá, ele disse: “Essa energia lá não é responsabilidade do Estado nem da União. É de uma empresa que ganhou a concessão.” Errado: é da concessionária e de quem zela pelo sistema. A Aneel é independente, não está diretamente subordinada a Bolsonaro, mas pertence à União. O presidente deveria ter falado grosso e cobrado responsabilidade. Sem atitudes desse tipo, os inimigos ideológicos das concessões de serviços públicos terão sempre muita margem para criticá-las. Ah, sim: o presidente também deveria ter dirigido uma palavra de atenção e apoio aos cidadãos que enfrentaram o caos no Amapá. Mas pedir um gesto humano de Bolsonaro talvez já seja demais. 

Fraudadores da democracia – O vazamento de dados de servidores do TSE e os problemas técnicos que atrasaram a divulgação dos resultados da eleição no domingo deixaram felizes os bolsonaristas. Foram nova ocasião para insistir na ideia retrógrada do voto impresso. Por que retrógrada? Porque enfraquece ou elimina o segredo do voto, fundamental para impedir que coronéis dos rincões, empregadores mandões, religiosos que controlam seu rebanho com mão de ferro, milicianos violentos, chefões do tráfico e outras figuras sombrias ponham um cabresto no eleitor, como aconteceu em eras passadas. Devido a esse risco, o STF já decretou que a réplica impressa do voto é inconstitucional. A solução para aumentar a segurança das eleições tem de vir do século XXI, e não de um pedaço de papel: mais tecnologia e métodos mais rigorosos de auditar os resultados, sempre preservando o sigilo da escolha dos cidadãos. Mas não adianta. Por má fé ou ignorância, o presidente e seus asseclas continuarão batendo na mesma tecla. E mesmo que os sistemas antifraude mais inexpugnáveis sejam adotados no Brasil, eles não vão parar de levantar suspeitas infundadas e teorias da conspiração sobre a lisura do pleito. Como fazem os asseclas de Trump nos Estados Unidos. É disso que se alimentam os fraudadores da democracia.