Hyldon festeja inclusão de 2 discos clássicos nas plataformas digitais

O motivo da conversa de Hyldon com a reportagem do Estadão era a inclusão nas plataformas digitais de dois importantes discos em sua trajetória: Deus, a Natureza e a Música, de 1976, sucessor de seu acachapante álbum de estreia, Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda…, lançado um ano antes, e Sabor de Amor, de 1981.

Hyldon lamenta a perda recente de dois nomes ligados à soul music brasileira: os compositores Luis Vagner e Cassiano. “Luis me incentivou, disse que o trabalho estava ficando legal”, conta. Com Cassiano, além da amizade, dividiu uma viagem de carro do Rio para Salvador, no começo dos anos 1970, na qual pararam em diversos prostíbulos para tocar.

Hyldon, de fato, tem muita história para contar – e das boas. Aos 70 anos de idade e mais de 50 de carreira, um dos pilares da soul music brasileira – ao lado de Cassiano e Tim Maia, ele repassa, em quase duas horas de conversa por telefone, uma carreira que começou quando deixou o sertão baiano. Ele nasceu em Salvador, mas, ainda pequeno, foi morar em Senhor do Bonfim – e se mudou para Niterói, ainda na adolescência.

Foi na cidade fluminense que ele deu os primeiros passos profissionais, incentivado pelo primo, Pedrinho, guitarrista do The Fevers, que lhe cedeu instrumentos e amplificadores para que ele montasse uma banda de baile, batizada de Os Abelhas.

Depois, veio o conjunto Os Selvagens, ao lado de Michael Sullivan, a produção de faixas e discos de artistas como Wanderléa, Erasmo Carlos, Jerry Adriani e Paulo Sérgio e participações em gravações que se tornaram icônicas, como Uma Vida Só, de Odair José.

Hyldon conheceu a música negra ao lado de Tony Tornado, Cassiano e Tim Maia – este último com quem aprendeu a tocar baixo e a se ligar no som do bumbo da bateria, a base da soul music. Em estúdio, ele também gravou com Wilson Simonal e Luiz Melodia. Esse contato musical fez com que ele passasse a desejar fazer seu próprio som, deixando para trás as baladas açucaradas da Jovem Guarda.

Mas, para conseguir fazer isso, ele teve que bater de frente com André Midani (1932-2019), um dos maiores executivos do mercado fonográfico mundial, para colocar nas lojas seu primeiro álbum, gravado de forma inusitada e que rendeu, além da faixa-título, os hits As Dores do Mundo e Na Sombra de uma Árvore.

Nesta época, Hyldon trabalhava como produtor da gravadora Polygram. Certo dia, esperava no estúdio o cantor amazonense Franc Landi, especialista em gravar versões para canções estrangeiras, para uma gravação. Landi faltou. Hyldon, então, que já havia convocado o baterista Mamão e o baixista Alex Malheiros, do grupo Azimuth, resolveu gravar suas músicas.

Quando chegou aos ouvidos de Midani, ele gostou, mas não queria que Hyldon gravasse um disco apenas com suas composições. Teria que ter músicas de outros compositores. Uma das escolhidas era Angie, dos Rolling Stones. “Eu fui até a sala dele. Queria dar porrada”, conta.

Depois de ir para a fábrica três vezes e ser barrado pelo executivo em um processo que durou dois anos, por fim, o disco Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda… saiu como Hyldon havia planejado, puxado pelo sucesso de compacto que trazia a faixa homônima de um lado e Meu Patuá de outro. A pendenga deixou um travo no artista que decidiu passar uma temporada em Nova York.

Foi na cidade americana que ele viu, no Apollo Theater, no bairro do Harlem, shows de artistas como The Temptations e Al Green. No Radio City Music Hall testemunhou Marvin Gaye “sair do chão” do teatro, vestido de um terno branco, e cantar What’s Going On, acompanhado de orquestra. Baiano, Hyldon voltou para o Brasil quando o frio chegou e a saudade da família apertou. “Essa temporada me fez ver que eu estava no caminho certo com a minha música. Levava meus discos para os DJs e eles tocavam nas boates”, diz.

Aqui, sentindo-se um pária na gravadora – ele conta que não tinha ao menos fotos de divulgação para distribuir -, cumpriu o contrato e fez um novo disco. Deus, a Natureza e a Música, o qual acaba de chegar às plataformas e que, em julho, deve ganhar pelo selo Hare No uma versão em vinil acompanhada de um box que trará fotos exclusivas, camiseta e fita cassete.

“Estava revoltado. Fiz tudo ao contrário do que havia feito no primeiro. Não tem uma balada. Queria fazer algo para não tocar no rádio. Ficou ótimo, mas era muito avançado para a época”, diz.

O álbum conta com acompanhamento das bandas Azimuth e Black Rio, esta última, fundada naquele momento. O pianista Cristóvão Bastos fez os arranjos de cordas para uma das faixas, que mostram a certa “loucura” de Hyldon. A triste Pra Dizer Adeus, de Edu Lobo e Torquato Neto, ganhou levada soul. A escolha rendeu uma advertência do amigo Tim. “Pô, Hyldon. Não mexe com essa rapaziada da bossa nova. Deixa esses caras quietos”, disse o síndico, chamado por Hyldon de “chefe da tribo”.

Outra faixa mais experimental é a miniópera pop Sheila Guarany, em três atos. A história de uma mulher, inspirada em uma amiga dele, que não usava maquiagem, “só pó no rosto, bem na ponta do nariz”, passou incólume pela censura federal, para espanto do próprio compositor.

Em Primeira Pessoa do Singular, parceria com Caetano Veloso, a “censura” veio do próprio Hyldon, que trocou o neologismo “intrasmissivelmente” escrito por Caetano para “agindo assim”, sem avisar ao parceiro. “Achei que meu público não ia entender. Só agora, em uma live recente, eu cantei o verso original e pedi desculpas pela troca”, conta.

Completando 40 anos, Sabor de Amor é o segundo álbum que entrou agora nas plataformas digitais. “É meu melhor disco. Ele deriva de um show que eu fiz no Teatro Opinião. Então, chegamos no estúdio com as músicas bem redondas”, diz.

Nessa temporada, Tim Maia apareceu e tocou percussão. Fez o show inteiro. Juntos, eles cantaram Azul da Cor do Mar. Hyldon guarda o áudio gravado naquela noite até hoje.

A faixa que abre o disco, Vadiagem, flerta com a disco music. Na ficha técnica, os velhos camaradas Mamão, na bateria, Alexandre Malheiros, Antonio Adolfo, ao piano elétrico, Alexandre Malheiros, no baixo e José Roberto Bertrami, nos sintetizadores.

Hyldon, embora não tenha nunca parado de trabalhar, sente certa nostalgia dos anos 1970 e 1980, mais precisamente dos estúdios, ambiente que sempre atuou. Diz que os teclados transformaram as músicas. As gravadoras não colocam mais à disposição as orquestras de cordas que podiam ser usadas por todo elenco. Quase não há mais elenco nas gravadoras, essa é a verdade.

De contemporâneo, elogia as cantoras Céu, com quem compôs O Tombo, em 2013, e Liniker como seguidores da trilha soul que ele, Tim e Cassiano difundiram. De fora, ouve nomes como o cantor e compositor canadense The Weeknd e o americano Bruno Mars. “Mas não é igual você ouvir Marvin Gaye e Earth, Wind & Fire”, diz.

Presente

Hyldon fez – até agora – incríveis 150 lives. Grande parte delas foi transmitida pelo Instagram, por vontade própria. Outras, realizadas profissionalmente, com banda completa. Ele afirma que ainda tenta se acostumar com o que chama de “silêncio pesado”, ou melhor, a falta do público perto do palco. “Falta algo. Pode ser até uma vaia. Pelo menos é alguma coisa”, diverte-se.

As lives nasceram com a intenção de divulgar o disco de inéditas SoulSambaRock, lançado pouco antes de a pandemia estourar e frustrar a estreia do álbum nos palcos. Com o tempo, tanto ele quanto seus espectadores no Instagram – ele soma mais de 14 mil seguidores – foram se acostumando com as apresentações online. Na edição de número 100 teve até bolo.

“Eu tomo banho, me arrumo, ponho camisa nova, passo perfume. Eu gosto de trabalhar”, conta Hyldon. No repertório, além de clássicos da carreira, vez ou outra canta músicas que gostaria de ter feito ou gravado, como Se, do Djavan, A História de Lily Braun, de Edu Lobo e Chico Buarque, e Outras, de Vander Lee e Zeca Baleiro.

Hyldon já pensa em um próximo disco. Uma música nova pode surgir a qualquer hora. Assim como em 1976, ele fez A Fim de Voltar enquanto Tim Maia almoçava. Ou, mais recentemente, Vida que Segue, composta em 3 dias para Gal Costa cantar no álbum A Pele do Futuro.

“Produzir me move. Começar uma música do nada e vê-la terminada me alimenta, me leva para frente. Ver nascer uma parceria… Leio livros, assisto a filmes, vejo dança moderna, frequento exposições. Com isso, tenho as ideias para compor.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.