As recentes eleições francesas confirmaram o triunfo da era Macron, a consolidação da extrema direita e o aprofundamento das fraturas identitárias e geracionais em uma sociedade que tenta se modernizar sem perder as raízes e o orgulho. É exatamente sobre esses temas que trata o livro “Anéantir” (Aniquilar), de Michel Houellebecq, de longe o escritor mais importante e bem-sucedido da França.

A primeira edição deste seu oitavo romance teve tiragem superior a 300 mil cópias no início do ano, para se ter uma ideia de sua influência e popularidade dentro e fora do país. Com mais de 700 págs. e em edição de luxo (a pedido do autor), ainda é inédito no Brasil, onde ele é publicado pela editora Record.

A obra não deixa de tratar das obsessões que fizeram a fama de Houellebecq: pessimismo, visão niilista, suicídio, banalização da internet, a normalização da pornografia e da prostituição e o desencanto com as relações sociais. Mas esse livro adquiriu um tom mais político e maduro do que os outros, além de ser menos explícito.

Tudo gira em torno de um “énarque” (elite do funcionalismo público), chamado Paul, que é o número dois do Ministério da Economia. Ele precisa lidar com a campanha presidencial após o segundo mandato de Macron, além de sofrer com problemas em sua família, inclusive de saúde, que acabam consumindo sua própria vida privada. A obra compõe um painel da vida francesa: o cotidiano provinciano no interior, as regiões icônicas (Beaujolais, Nova Aquitânia e Loire) e o norte decadente e desindustrializado.  Além, é claro, da vida em Paris do disciplinado funcionário, que mora na região do seu Ministério, no ultramoderno parque de Bercy.

Em 2015 o escritor já tinha enveredado pela política com “Submissão”, uma distopia sobre a França convertida em uma sociedade muçulmana, que se tornou presciente ao ser lançada no exato dia da chacina no Bataclan. Em “Anéantir”, ele volta de forma tangencial às consequências físicas e morais do terrorismo fundamentalista, mas sob a perspectiva do triunfo da tradicional sociedade gaulesa.

No livro, Houellebecq faz um sereno e curioso elogio do centro político, representado pelo seu chefe que pode ser escolhido como sucessor de Macron. Escolhido é uma boa expressão porque nas últimas décadas os partidos políticos tradicionais implodiram (tanto a esquerda moderada quanto os herdeiros do gaulismo), e o próprio presidente atual se viabilizou criando um novo partido personalista. Esse é um dos nós da política francesa. Quando Macron sair, quem vai ocupar o espaço do centro político?

E é exatamente sobre a possibilidade de o país preservar sua tradição e força moderadora, calcada na burocracia e moral republicanas, permanecendo como fortaleza do centro político europeu, que o escritor reflete. Ele discorre sobre a herança do Iluminismo e abre espaço para os críticos da Revolução Francesa, como Joseph de Maistre, um dos pais do movimento conservador.

Para Houellebecq, a maior ameaça ao país no futuro próximo é a ascensão do extremismo de direita, projetando que os herdeiros de Marine Le Pen chegarão muito perto de alcançar o poder em 2027. O centro resiste, e enfrenta dessa vez não a ameaça do terror político, mas a de obscuros grupos neopagãos e de tecnoterroristas que lembram o famoso unabomber americano, inspirados por teorias mirabolantes pseudocientíficas. Não é apenas o governo que está na mira. É a própria modernidade que está sob risco.

Enquanto ajuda a defender o crescimento racional e o renascimento econômico e industrial da França, o personagem cai em um inferno pessoal que o leva a redescobrir o afeto e o próprio casamento, para em seguida enfrentar a as contingências da sua fragilidade. Apesar de continuar cético e mordaz, Houellebecq é estranhamente contemplativo e quase otimista neste livro. Quase. Revela um olhar generoso para o caos que tomou conta da vida política francesa, enxergando o futuro como se fosse uma comovente tela do romantismo: uma bela representação da calmaria que antecede a extinção.