A ex-jogadora de basquete da seleção brasileira Hortência participou ontem de uma série de entrevistas que a equipe de esportes do Grupo RBS, de Porto Alegre, tem feito e que pretende traçar os rumos do esporte olímpico no pós-pandemia. Medalhista olímpica em 1996 e comentarista dos canais Sportv, Hortência na entrevista traçou cenários para a Olimpíada de Tóquio 2021, avaliou o esporte olímpico depois do Coronavírus, falou sobre o comportamento dos atletas diante de um mundo incerto e explicou como as políticas públicas brasileiras voltadas ao esporte têm refletido no desempenho dos atletas olímpicos.

Como você espera que sejam os Jogos de Tóquio em 2021?

A torcida é para que realmente aconteça a Olimpíada, né? As coisas estão indecisas ainda. A delegação brasileira tem alguns atletas que já estão classificados e viajaram para Portugal e vão fazer até dezembro treinamento na Europa. Alguns atletas já estão em fase de treinos, se preparando para os Jogos. Não podemos ficar atrás, porque alguns países já estão abertos há algum tempo, alguns ainda estão fechados, uns estão em quarentena, atletas treinando em casa, outros já estão podendo treinar nos ginásios, outros já estão competindo, outros proibidos de competir, é meio estranho. Não sei como vai ser tecnicamente essa Olimpíada, vai afetar bastante os atletas. Muitos estão treinando certo, outros estão ainda impossibilitados de treinar. O país que estiver mais bem preparado a dar suporte para que seus atletas possam treinar de maneira adequada vai sair na frente.

Você acredita que haverá desnível entre os atletas?

Isso vai acontecer muito. Vou dar o exemplo do meu filho (João Victor Oliva). Ele é cavaleiro olímpico, o conjunto já tinha se classificado para Olimpíada de Tóquio. Ele não era o dono do cavalo. O que aconteceu? Pelo fato de a Olimpíada ter sido adiada, o dono resolveu mandar o cavalo para os Estados Unidos, precisou de dinheiro e o vendeu. Agora ele está competindo de novo para poder classificar outro cavalo, o conjunto, para poder ir para a Olimpíada. Outros atletas vão ser afetados porque perderam patrocinadores, não vão ter condições financeiras de ter um treinamento ideal. Tem muito dinheiro envolvido nisso, estádios, ginásios construídos, vila olímpica, empresas, patrocínios, enfim. As pessoas que compraram ingressos, que tiveram de comprar passagens, reservar hotel… Olha, foi um problema o fato de não ter Olimpíada neste ano.

O que vai mudar no esporte olímpico depois da pandemia?

Olha, não sei te responder essa pergunta. Temos de esperar acontecer, porque é uma pandemia, quando ela desaparecer, acho que volta ao normal. Volta os torcedores, por exemplo. Como vai ser na Olimpíada, será que até lá essa pandemia já passou? Se a vacina já tiver sido descoberta, maravilha, porque aí você vai poder ter torcedores, vai poder ficar sem máscara. E se não passar? Vindo pessoas do mundo inteiro para assistir, é complicado, sinceramente não sei como vai ser depois. Acho muito difícil de acontecer se não tiver a vacina. Em cada continente a pandemia está acontecendo de uma maneira diferente. Em São Paulo, a pandemia está começando a querer ir embora, tem lugares que ainda está começando. Como vai ser isso? Um país como o Japão receber pessoas de fora, tem pesquisa lá (mostrando) que os japoneses não querem a Olimpíada, estão fazendo uma pressão muito grande, não querem abrir o país para gente do mundo inteiro, estão com muito medo. É muito incerto o futuro da Olimpíada. Já estão falando de tirar algumas modalidades, como será esse critério? Vai ser estranho.

Como o atleta lida com a ansiedade diante dessa incerteza?

O atleta de alto rendimento, ele tem de ter um equilíbrio emocional muito forte. Vou dar o exemplo do basquete. Você está ali dentro da quadra, está perdendo um jogo, tem de correr atrás do resultado, se você se desesperar e não tiver equilíbrio emocional, não consegue correr atrás do resultado. E mesmo se você estiver na frente, tem de segurar a pressão para segurar a sua vitória. Não adianta você ficar pensando no passado, ficar se lamentando, já foi. “Ah, mas um ano antes eu teria uma performance muito melhor”. Tudo bem, mas aceita que dói menos. Na minha cabeça, eu pensaria assim. Tudo bem, eu iria jogar com 30 anos, vou jogar com 31. Dane-se, pensamento positivo, é isso que o atleta tem de ter. Equilíbrio emocional e pensar daqui para frente e não no que já passou.

Você foi dirigente de basquete e é integrante da comissão de atletas do COB. Como avalia a realidade dos clubes formadores de atletas no Brasil?

Não está em uma situação legal. Já tinha problemas antes, quando você vê lei que ajuda o esporte, Lei Agnelo/Piva (repasses de arrecadação das loterias federais), que ajuda o COB, que passa dinheiro para as confederações, mas você não vê o clube em si, com exceção da Lei de Incentivo ao Esporte, que pode fazer um projeto patrocinado. Os Estados Unidos formam o atleta dentro de uma universidade, que seria o ideal aqui no Brasil, formar os atletas nas escolas. Aqui você forma o atleta dentro do clube, e os clubes não têm muita ajuda, apesar de ter uma confederação brasileira de clubes, que ajuda um pouco. Temos vários clubes tradicionais, principalmente no basquete, o Pinheiros, estão acabando com seus times, porque essa pandemia afetou todo mundo. Se não tem o time principal, não vai fazer a base, então fica difícil. Fico com pena, comecei em uma escolinha de basquete e logo em seguida fui para um clube. A primeira vez que tive contato com uma bola foi na aula de educação física da escola e depois passei para o clube. É o caminho, mas agora o clube está passando por dificuldade, não tem patrocínio, as empresas estão com dificuldades pela pandemia. Acredito que daqui a dois, três anos a gente vá sentir bastante.

Como as políticas públicas brasileiras voltadas ao esporte têm refletido no desempenho dos atletas olímpicos?

O atleta, se tem resultado, ele tem o Bolsa Atleta, que ajuda. O que a gente briga muito, eu faço parte do grupo Atletas pelo Brasil, é de uma política pública geral. A gente briga muito para que todas as crianças tenham acesso ao esporte, você não vê isso. Toda criança tem de ter acesso ao esporte e nem todo lugar oferece esse acesso. Coloquem o esporte dentro da escola, você quer atingir uma criança de cinco anos, de 15 anos, onde ela está? Ela está na escola, que é o berço de tudo. Foi assim que aconteceu comigo e deveria acontecer com todas as crianças. Recebo muitas mensagens: “Hortência, queria tanto jogar basquete, onde eu vou?”. Gostaria de dizer assim para elas: “Vá à escola, é lá que vai ter esse suporte”. Mas infelizmente você sabe que não é bem assim. Não dão muito valor ao professor de educação física da escola, às vezes ele vai dar aula e não tem a bola, não tem a tabela, não tem a quadra. É muito difícil, mas sou a favor de todo mundo ter acesso ao esporte através da escola.

Como você vê o momento do basquete brasileiro? A seleção feminina não tem mais chance de classificação para a Olimpíada, a masculina tem um caminho bem turbulento pelas dificuldades impostas no Pré-Olímpico.

Fico triste de ver o basquete nesse nível, principalmente o feminino. Não pelas jogadoras, porque elas estão fazendo até de mais, mas pela gestão passada (do gaúcho Carlos Nunes), que foi desastrosa e deixou a CBB com uma dívida de mais de R$ 40 milhões. Você não consegue arrumar patrocínio, ainda mais agora. Aí você não investe. Quando me perguntam, digo: “Olha, se começar agora, vai ter um resultado daqui a 15, 20 anos”. Mas não começa. Não crucificando o novo gestor da CBB (o paraense Guy Peixoto), porque ele já pegou um pepino muito grande, mas tem de investir na base, botar esse pessoal para viajar, para jogar, mas como vai fazer? Como vai dar treinamento para essas meninas que estão iniciando, se não tem patrocínio, se não tem dinheiro?

Você não pode exigir do adulto um resultado se ele não teve na base um treinamento especial, não teve viagem, não interagiu com outras escolas, a americana, a europeia, a asiática. Tem de conhecer os times pelo mundo, tem de jogar para ter experiência. Isso demora. Para lapidar uma atleta, demora anos. Eu demorei 18 anos para ser campeã do mundo. Não é de uma hora para outra. Antes da pandemia, se você pegar uma jogadora do vôlei que tenha 17 anos e uma do basquete que tenha a mesma idade e ver quantos jogos internacionais cada uma fez, você vai ver que a jogadora de basquete é muito abaixo do que a do vôlei. Isso é experiência, por isso o vôlei teve até agora bastante resultados. Isso demanda tempo, planejamento, um projeto bem feito e também dinheiro. A gestão é tudo.

Porque o basquete definha no Rio Grande do Sul? Em 1994, o Pitt/Corinthians, de Santa Cruz do Sul, foi campeão nacional. O Caxias chegou aos playoffs do NBB em 2018, mas na temporada seguinte teve de parar por falta de recursos.

É dinheiro. É patrocínio. Você não consegue fazer nada sem dinheiro. O basquete masculino tem a NBB, uma liga com boa gestão. Tem retorno de televisão, da mídia. No fundo, o brasileiro gosta de basquete, tanto que a NBA é um sucesso ano Brasil, todo mundo assiste, todo mundo gosta, torce. Na minha época, o ginásio ficava lotado, porque o brasileiro gosta de um jogo bem feito, de emoção. Precisamos ter ídolos, mas nossos ídolos estão indo embora.

Você é campeã mundial, medalhista de prata em 1996, conquistou diversos títulos na carreira, que mensagem pode deixar para o atleta brasileiro que vai representar o Brasil em Tóquio em 2021?

Que ele foque somente no trabalho dele. Temos muitos problemas, todo mundo sabe, não é só o Brasil, o mundo inteiro está nesse mesmo problema, mas agora não adianta você ficar chorando com o problema, como vou resolver o meu problema, como eu vou me planejar para sair dessa situação e chegar lá e ganhar uma medalha ou fazer o que eu estou me propondo a fazer. Então é focar no seu objetivo. O atleta vive disso, tem até uma frase que diz “no pain, no gain” (sem dor, sem ganho). É o tempo todo essa pressão em cima do atleta, é segurar a onda, treinar o máximo que puder e também participar de uma Olimpíada é se divertir, é o prazer de estar lá, é o prazer de você degustar tudo aquilo que eles vão te proporcionar, o desfile, estar dentro da vila, estar do lado dos seus ídolos, aproveitar. O resultado não é em um, dois meses que você vai treinar mais ou menos, é o que você fez em seu passado, o que você está fazendo agora e o que você vai fazer até chegar lá, então é focar no seu objetivo e sem reclamação e treinar para caramba.