Um homem negro foi atacado com uma faca na manhã do sábado, 17, no bairro Rio Branco, em Porto Alegre (RS), e, em seguida, foi detido pela polícia, de acordo com testemunhas, que bradavam: “Ele é a vítima”.

Imagens mostram uma ação truculenta dos policiais militares contra ele, que grita: “O cara tentou me matar”. O homem branco acusado de agressão também foi levado pelas autoridades.

A reportagem conseguiu apurar que o homem negro se chama Éverton e é motoboy. Não foi possível identificar o acusado pela agressão.

A Secretaria de Segurança Pública gaúcha informou que, após depoimentos e perícias, ambos foram liberados. A Polícia Civil registrou dois boletins de ocorrência, um por lesão corporal e outro por abuso de autoridade, e, segundo a SSP, “investigará os casos por meio de novos depoimentos de testemunhas e análise das imagens”. A nota foi publicada no site oficial.

“Sobre a prisão de um homem negro que seria vítima de tentativa de homicídio em POA, determinamos via Corregedoria da Brigada Militar, a abertura de sindicância para ouvir imediatamente testemunhas e apurar as circunstâncias da ocorrência, com a mais absoluta celeridade”, afirmou o governador Eduardo Leite (PSDB), no X (antigo Twitter). Ele frisou, na postagem, sua “absoluta confiança” na corporação, e prometeu que a apuração da conduta será “célere” e “rigorosa”.

O ministro Silvio Luiz de Almeida, da pasta dos Direitos Humanos e da Cidadania, afirmou que o caso mostra como o “racismo perverte as instituições e, por consequência, seus agentes”. Segundo ele, o trabalhador negro foi tratado como um criminoso. Junto a Anielle Franco, do Ministério da Igualdade Racial, pretende acompanhar as investigações.

“É preciso que as instituições passem a analisar de forma crítica o seu modo de funcionamento e aceitar que em uma sociedade em que o racismo é estrutural, medidas consistentes e constantes no campo da formação e das práticas de governança antirracista devem ser adotadas. Em outras palavras, é preciso aceitar críticas e passar a adotar medidas sérias de combate ao racismo em nível institucional”, escreveu no X.

A reportagem tentou contato com a Brigada Militar e a SSP para que fornecessem mais informações sobre o caso e para relatar as denúncias ouvidas pelo Estadão. Não houve resposta até a publicação. A Polícia Civil apenas reencaminhou o posicionamento da SSP.

‘O cara tentou me matar’

Pouco antes do meio-dia, o professor de Filosofia Renato Levin Borges estava com mais três amigos na fila de um restaurante. No total, estima, cerca de 20 pessoas esperavam o estabelecimento abrir. Virado para a esquina da Avenida Osvaldo Aranha, percebeu uma movimentação estranha e assistiu na sequência ao que chamou de “cenas chocantes”.

“Vi a vítima andando no meio da rua, para trás, numa posição defensiva. E o agressor vindo em direção a ele, sem camisa e de bermuda,. Eles gritavam alguma coisa um para o outro”, narrou ao Estadão.

Eles decidem, então, percorrer os 50 metros que os distanciavam da ocorrência para entender o conflito e prestar auxílio. “Logo nos primeiros passos, vi que o agressor estava com uma faca na mão direita, indo em direção à vítima, que, em um determinado momento, achou uma pedra no chão para se defender”, diz.

“Quando chegamos mais perto, a vítima disse: ‘Ele tentou me matar’.” Eles viram que o motoboy apresentava uma ferida na garganta. “Não foi um corte profundo, mas estava sangrando.”

Ele e outras pessoas que se aproximavam, que iriam se consolidar em um grupo de 20 a 30 espectadores, gritavam que parassem e ligavam para as autoridades. Enquanto isso, uma amiga de Borges, uma mulher negra, se aproxima de Éverton e consegue acalmá-lo e impedir que revide. “Não me lembro a frase exatamente, mas ela disse algo como: ‘Sabe que para nós é diferente’.”

Em cerca de dez minutos, duas viaturas chegam e Renato Borges começa a gravação. “Quando a polícia desceu, a gente ficou gritando para dizer que o agressor era o homem branco, que estava com uma faca. A polícia nem sequer parou ele, foi direto na vítima tentando revistá-la. O Éverton estava nervoso e perguntou: ‘Por que estão está fazendo isso?’.” Renato classificou a abordagem como “muito violenta”.

As imagens que circulam nas redes sociais mostram a ação dos agentes. Um policial puxa a camiseta de Éverton, que diz “o errado é ele”, e aponta para o homem branco sem camisa. “Me larga”, pede. O agente, então, coloca-o contra a parede. Outros policiais se aproximam. Ao menos três tentam imobilizá-lo. “O cara tentou me matar”, grita o motoboy.

Enquanto isso, as pessoas em volta repetem para os policiais: “Ele é a vítima”, “calma” e “isso é racismo”. Os agentes continuam segurando o homem negro contra a parede.

Segundo Renato Borges, o homem branco volta ao apartamento enquanto os agentes imobilizam Éverton. Ele troca de roupa e só desce novamente quando mais viaturas chegam e ele é convocado por outros policiais. “Desceu e foi calmamente conduzido à viatura.”

Como começou?

Borges e as amigas não assistiram às cenas iniciais do caso. No entanto, conversaram com outros motoboys que trabalham na região, conhecida por ter muitos restaurantes.

“Eles contaram que esse senhor sempre fica xingando (eles) ali. Os motoboys ficam perto da janela dele (para descansar e às vezes conversar). Nesse dia, ele desceu com a faca e encontrou o único que estava ali descansando, o Éverton”, afirma.

‘Vexatório’

Nas redes sociais, as testemunhas conseguiram mobilizar advogados sociais e ativistas, como o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), que é da Bancada Negra. O parlamentar se dirigiu ao Palácio da Polícia, conversou com Éverton, com os juristas e com algumas testemunhas.

“O Éverton não apenas foi detido, como foi acusado de desacato e resistência à prisão”, disse ele ao Estadão. “Se corre sangue nas veias dele, é claro que iria resistir, pois tinha sofrido uma tentativa de homicídio minutos antes.”

“No Palácio da Polícia, ele ficou algemado num ferro na sala de custódia, situação vexatória. Enquanto isso, o agressor estava no lado de fora conversando com os policiais na viatura”, completou.

Segundo o parlamentar, o atendimento jurídico chegou a tempo de “evitar que ele continuasse preso”. “O que foi uma hipótese aventada pelos policiais que perpetraram a prisão.” As testemunhas, disse, registraram boletim de ocorrência de abuso de autoridade e racismo.

Gomes pretende levar o caso para a Comissão de Segurança Pública da Assembleia e a órgãos de controle externo das polícias, como o Ministério Público. “Infelizmente, não confio na Corregedoria da Brigada Militar, que acaba funcionando como um órgão de proteção dos policiais. Sem pressão externa à corporação, o caso não será resolvido”, disse. “Éverton precisa de reparações à humilhação que viveu e a sociedade gaúcha precisa ver reformas de caráter democrático e antirracista nas forças de segurança.”

Um ato contra o racismo e a violência policial foi convocado pelo Sindicato dos Motociclistas Profissionais (Sindimoto), na Avenida Oswaldo Aranha. A concentração começa às 15h.