História revolvida: a importância do Instituto Pretos Novos

História revolvida: a importância do Instituto Pretos Novos

"InteriorOrganização que abriga cemitério de africanos escravizados no Rio de Janeiro enfrenta dificuldades para continuar funcionando. Em qualquer outro lugar do mundo, o Instituto Pretos Novos seria uma grande memorial.Um milhão de pessoas. Foi aproximadamente esse o número de homens e mulheres sequestrados de diferentes partes do continente africano. Depois de semanas numa travessia atlântica que mais parecia a morte em vida – e que de fato representou a morte de milhares de pessoas – eles aportaram no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro que teve sua história reescavada, se tornando um importante circuito turístico da cidade, que não por acaso, foi o maior centro escravista do mundo.

Maior porto de desembarques de africanos escravizados no mundo, o Valongo foi um complexo criado em meados do século 18 e que funcionou a todo o vapor até 1831.

O complexo era localizado na região portuária do Rio de Janeiro, mas especificamente entre os bairros da Gamboa e da Saúde. Na época de sua construção, o mercado de escravos foi retirado da região central da cidade (atual Praça XV) e alocado numa zona que fosse relativamente próxima do centro comercial do Rio – então vice-reino da colônia. Assim, um terrível espetáculo foi retirado das vistas da elite colonial. A mudança também garantia que quem quisesse comprar um africano/a escravizado não tivesse nenhum tipo de entrevero.

Mortes e descoberta

Uma das razões para que o mercado de africanos escravizados fosse deslocado para uma região menos central, se devia ao fato de que o final da travessia transatlântica representava um terrível espetáculo: a cada navio aportado, dezenas de homens, mulheres e crianças desciam em condições sub-humanas, desnutridos, mal conseguindo de manter de pé. Muitas, muitas vezes, com doenças infecciosas adquiridas pelas péssimas condições de higiene a que estavam submetidos dentro dos navios negreiros.

Uma parte significativa dessas pessoas não resistia, e horas ou dias depois de terem aportado numa terra nova, onde teriam que aprender a ser escravizados, eles faleciam.

Pretos novos era o termo utilizado para designar esses homens e mulheres africanos que morriam logo após o desembarque. E embora eles recebessem parte das liturgias previstas pelo catolicismo, a intensidade do tráfico transatlântico, e a perspectiva amplamente difundida de que suas vidas valiam muito pouco, fez com que a maior parte dos seus corpos fossem levados a um campo santo, próximo ao cais e ao mercado, e enterrados sem muitos cuidados.

Muitos anos depois, em 1995, uma notícia de jornal chamou a atenção: durante reformas em sua residência no bairro da Gamboa, nas imediações do antigo Cais do Valongo, o casal Merced e Petruccio Guimarães encontrou ossadas. Depois de uma averiguação arqueológica, foi constatado que se tratavam de restos mortais de africanos escravizados.

Mas não se tratava de um caso pontual de um escravizado que havia sido enterrado ali. A casa dos Guimarães havia sido construída em cima do que antes fora o Cemitério dos Pretos Novos, local que, entre 1772 e 1830 havia sido utilizado para enterrar os corpos de africanos recém-chegados no Valongo e que morriam pouco depois do desembarque.

O papel do Instituto Pretos Novos

Hoje, o local abriga um centro de memória, o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN). Criado em 2005, o IPN se dedica à preservação e divulgação da história da escravidão no Brasil, especialmente no contexto urbano do Rio de Janeiro, ocupando papel fundamental na luta pela valorização da memória negra na cidade.

Uma atuação que durante muito tempo não contou com nenhum apoio dos órgãos governamentais, que faziam vistas grossas à importância do instituto e de toda a região. Em parte, a valorização do instituto começo a mudar em meio às obras de revitalização do Porto Maravilha feitas em 2010 (no contexto de reformas dos jogos Olímpicos) que descortinaram uma avalanche de histórias propositadamente soterradas.

O reconhecimento da região do Cais do Valongo como Patrimônio Mundial pela Unesco, em 2017, lançou luz sobre a importância de toda aquela região para a história do Rio de Janeiro, do Brasil e do Mundo Atlântico – algo que até então era reivindicado pelos moradores, ativistas do movimento negro e alguns professores e pesquisadores que trabalhavam com a história da escravidão no país.

Recentemente, o IPN foi autuado judicialmente, por oferecer cursos (gratuitos em sua imensa maioria) que contam a história do cemitério e de toda aquela região. A prefeitura do Rio alegou que o alvará do local não reconhece a realização de aulas presenciais. Além disso, em abril, o instituto recebeu notificações de mandados de penhora do imóvel, por causa de atraso no pagamento de parcelas do IPTU, segundo o jornal O Globo.

Um contrassenso em meio ao reconhecimento tardio dos órgãos estatais sobre esse lugar de memória e, sobretudo, sobre o papel educador de uma organização que revolve a terra para dela narrar a vida de homens e mulheres que não tiveram direitos básicos garantidos nem em vida, nem depois da morte.

Em qualquer outro lugar do mundo, em que haja uma preocupação genuína e crítica sobre as histórias negras e a diáspora africana na formação do mundo contemporâneo, o IPN seria uma espécie de grande memorial, um local que deveria ser visitado e referenciado como um alerta de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade.

Já passou o tempo do IPN e de todo o complexo do Cais do Valongo se tornarem referência municipal, nacional e internacional de como podemos e devemos elencar outras memórias para compreender, em meio à terra revolta, as complexidades que compõe a história do Brasil.

__________________________________

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.