Acompanhar “The Crown” é como assistir a uma mistura de aula de história com reality show estrelado pela família mais poderosa do século 20. Ao contrário do que pode parecer, a combinação é positiva e deu origem a uma das melhores séries já produzidas até hoje. Cronologicamente, a primeira temporada de “The Crown” começa em 1947, com os preparativos para o casamento da jovem Elizabeth com o príncipe Philip. Coroada aos 25 anos após a morte do pai, George VI, em 1953, a rainha é o fio condutor que amarra a história da Inglaterra às aventuras da família real e aos problemas pessoais de seus membros. Com uma direção de arte primorosa e um elenco bastante afiado, o requinte dos detalhes da produção é sem precedentes na história de ficção sobre a realeza britânica. Inclusive o lado psicológico de sua líder: ao longo da trama, enquanto personagens importantes entram e saem de cena, como o primeiro-ministro Winston Churchill e o líder egípcio Gamal Abdel Nasser, a rainha permanece insipidamente imutável, decorativa como um vaso de porcelana inglesa.

DURONA Gillian Anderson como Margaret Thatcher: guerra à Argentina e gabinete masculino (Crédito:Divulgação)

Com a chegada de Diana (Emma Corrin) à família real, em 1981, isso muda de figura. Apesar de vir de uma família de aristocratas, os Spencer, ela era tratada como um brinquedo com o qual a rainha presenteou o primogênito, Charles. Era conveniente encontrar “uma garota sem passado e sem personalidade forte” para o príncipe e afastar o futuro rei da mulher casada por quem ele era realmente apaixonado, Camilla Parker Bowles. Diana não tinha passado, mas a força de sua personalidade construiu a figura que ela se tornaria no futuro. O plano de Elizabeth pode ter dado certo por um tempo, mas o temperamento de Diana que emergiu ao longo da década de 1980 revelou uma mulher muito mais forte e desafiadora que a rainha imaginara. O suposto conto de fadas da garotinha que se casa com um príncipe e vai morar no palácio durou até que Diana descobriu o poder de seu próprio carisma e a admiração do povo britânico.

Os bastidores da transformação da tímida Diana na poderosa Lady Di, que acompanhávamos pelos tabloides ingleses, aparecem na tela de maneira incrivelmente real – com o perdão do trocadilho. De acordo com a série, Charles é um bobão egocêntrico e infantil. Camilla Parker-Bowles, uma manipuladora. No melhor episódio da temporada, o criador da série, o roteirista Peter Morgan, opta por não mostrar o casamento de Charles e Diana – cenas que foram vistas na TV por um bilhão de pessoas. Em vez disso, mostra os preparativos para o evento, as tradições, o relacionamento frágil entre Diana e sua futura família. O resultado exibe exatamente como o castelo de Windsor desmoronou como um castelo de cartas.

Série

Dama de ferro

A outra personagem que rouba a cena é Margaret Thatcher, interpretação magistral de Gillian Anderson. A atriz de “Arquivo X” está perfeita como primeira-ministra, até no tom de voz monocórdio que se tornou sua temida marca registrada. Ao contrário de Diana, por quem nos apaixonamos logo de cara, Thatcher é seca e pragmática. Declara guerra à Argentina pelas ilhas Falklands (Malvinas, para os hermanos) sem pensar duas vezes. Interessante constatar que, mesmo tendo sido uma pioneira no cargo, montou um governo sem a presença de nenhuma outra mulher.

As locações também tornam “The Crown” uma produção especial. A perfeição das cenas filmadas no Palácio de Buckingham nos dá a impressão de que a série foi filmada in loco, embora na verdade tenham sido usadas mansões na Inglaterra, Escócia e Irlanda, paisagens rurais que parecem ter saído das telas do pintor William Turner. Foram, ao todo, mais de 90 locações escolhidas pelo supervisor Mark Walledge. O trabalho da figurinista Amy Roberts também é primoroso. Somente para essa temporada foram criadas mais de 400 peças, 120 apenas para vestir a rainha. Diana ganhou 120 looks – 17 deles para a viagem de apresentação da princesa aos súditos australianos. As filmagens tiveram a participação até de um grupo de cães da raça Corgi, os favoritos da monarca.

Apesar de todo esse investimento em produção — cada episódio das temporadas anteriores custou entre US$ 6,5 milhões e US$ 13 milhões –, a grande força de “The Crown” está no elemento humano. Olivia Colman já havia provado seu talento para interpretar a realeza em 2019, quando recebeu todos os prêmios da indústria – inclusive o Oscar – por seu papel como a rainha Anne em “A Favorita”, filme de Yorgos Lanthimos. Há ainda a ótima Helena Bonham-Carter, perfeita como a invejosa e desequilibrada princesa Margaret; Tobias Menzies, interpretando o príncipe Philip; e Josh O’Connor, como o ambíguo e complexado príncipe Charles. Um elenco à altura da pompa e circunstância de seus reais retratados.

Homens em segundo plano


“The Crown” é um matriarcado: príncipe Philip (Tobias Menzies), príncipe Charles (Josh O’Connor) e Denis Thatcher (Stephen Boxer), os coadjuvantes reais, são mostrados como homens fracos e obedientes a suas esposas – Elizabeth, Diana e Thatcher