Quando visitava a cidade japonesa de Hiroshima em 2012, o dramaturgo francês Jean-Paul Alègre recebeu um convite do prefeito local: por que não escrever uma peça que contasse a história do Rio Otagawa, que cruza a cidade e foi palco de fatos históricos, como a tragédia provocada pelo lançamento da bomba atômica, em 1945? Motivado, ele começou a escrever e o resultado é Eu, Ota, Rio de Hiroshima, publicado em livro agora no Brasil, pela Temporal.

A primeira montagem da peça estreou no palco japonês em 2015 e provocou muita comoção – ao conduzir o espectador/leitor pelo curso de suas águas, Ota oferece um testemunho da tragédia nuclear sob novo olhar: o da natureza. “Ota toma emprestado corpo e voz de mulher para narrar sua saga, da nascente até o mar, nos contar sobre sua coexistência com os habitantes de Hiroshima e, por fim, sobre o dia preciso em que Little Boy, a bomba estadunidense de urânio, fez com que suas águas entrassem em ebulição e uma chuva negra se precipitasse sobre elas”, observa a escritora, atriz e diretora Rita Carelli, no posfácio.

Com uma linguagem poética, Alègre transforma seu texto em um manifesto pacifista ao apontar para o perigo que ainda hoje ronda a humanidade, com a proliferação dos programas nucleares, que revela ainda a fragilidade dos acordos de paz. Sobre o trabalho, Alègre respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

Qual o papel do teatro na percepção da situação do mundo?

O teatro é um espelho da nossa sociedade. Um barômetro da democracia e um excelente indicador do estado da nossa sociedade. Se quisermos realmente saber o que ocorreu em uma determinada época, temos de ler as peças de teatro de então. O teatro, enfim, nos fala de nós mesmos. O teatro transforma a realidade sob a forma de ficção, contos, histórias, e permanece ancorado na sua época primeiramente pela força da linguagem. “Diga-me como você fala, como se exprime e direi quem você é” talvez devesse ser um dos lemas do teatro.

Eu, Ota, Rio de Hiroshima foi escrito a pedido do prefeito daquela cidade. É difícil escrever sob encomenda? O que o levou a aceitar o projeto?

Pessoalmente, gosto muito de escrever sob encomenda, pois me obriga a me debruçar sobre temas que, de outro modo, não o faria. Uma encomenda é algo estimulante. E, no caso dessa peça, foi uma incitação. Eu tinha total liberdade quanto à forma, ao número de personagens ou à maneira de abordar o tempo. Simplesmente, o prefeito de Hiroshima, sabendo que eu gostava muito de dar voz aos animais, aos objetos, enfim, a todos que não têm voz na vida real, mas podem se expressar por meio do teatro, disse-me que esse rio poderia relatar ele mesmo o que havia vivido naquelas circunstâncias particulares. Era um ponto de partida formidável. Mas, no caso daquela tragédia, eu tinha apenas elementos que obtive na escola ou em minhas leituras. Não sou de modo nenhum um historiador. Meu ofício é inventar histórias. Era preciso, portanto, encontrar um meio de falar o que todo mundo mais ou menos conhece, de maneira original. Fazer o rio falar, esse era o meio ideal.

A tragédia de Hiroshima inspirou inúmeras obras, como o filme de Alain Resnais, para dar um exemplo. O que o senhor pensa desse imenso material?

Tudo foi dito e escrito sobre Hiroshima. É um dos grandes traumas da história da humanidade. Portanto, foi preciso esquecer tudo e recolocar o foco em duas coisas essenciais, do meu ponto de vista, no ato teatral: a força da poesia e o poder do humanismo. Isso porque, se continuamos a ir ao teatro, em uma época em que o audiovisual impera de modo absoluto, é porque buscamos tais emoções. Imaginando essas duas crianças, o irmão e a irmã, que vão um ao encontro do outro ao longo desse rio, naquela manhã fatídica, eu retorno a essas emoções. A simplicidade da vida, do amor, do afeto, a presença da água, o frescor, o ritmo do tempo que passa, diante da loucura dos homens.

Para escrever a peça Sete Afluentes do Rio Ota, o canadense Robert Lepage visitou Hiroshima e ficou surpreso ao encontrar uma cidade animada – ele esperava ver vestígios marcantes da tragédia. O mesmo ocorreu com o senhor. O que realmente o surpreendeu?

Boa pergunta. O que me assombrou, efetivamente, e deu origem à peça (de maneira inconsciente no início, evidentemente) foi a beleza tranquila dessa cidade, a natureza luxuriante, a calma do rio Ota, a beleza do mar, o charme das ilhas na baía. E a extrema simplicidade do memorial. Tudo isso é totalmente diferente da violência inaudita que ocorreu ali. Mais ou menos como as praias onde os aliados desembarcaram, na França, em 1944: crianças se banham rindo hoje naquele local, onde homens deram suas vidas. É um extrato impactante da história da humanidade.

Como os japoneses reagiram à maneira pela qual o senhor descreve toda a tragédia de Hiroshima, na guerra?

Era uma aposta, de fato. Tive a sorte de ter peças muito encenadas no país. Passei inúmeras temporadas ali quando da representação de algumas das minhas peças. Mas essa foi a primeira vez que evoquei uma tragédia que pertencia a eles de alguma maneira e que os afetava diretamente. Assim, fiquei muito comovido com o fato de o público japonês, os jornais e a mídia japonesa receberem com entusiasmo a minha peça. No Japão, as pessoas procuram não mostrar muito as suas emoções. Entretanto, nos teatros de Tóquio onde a peça foi encenada, depois reprisada, havia espectadores que não conseguiam conter as lágrimas. Foi comovente. Além disso, a peça foi excepcionalmente autorizada a ser encenada no próprio local da catástrofe, em Hiroshima, em um dos raros edifícios que sobreviveram à bomba atômica.

Mais tarde, o Japão sofreu uma outra tragédia nuclear, em Fukushima. O senhor acha que a reação japonesa mudou de uma maneira ou outra?

Os japoneses, como eu disse, são muito discretos quanto aos seus sofrimentos e dores. Fukushima despertou profundos terrores na sociedade nipônica. Revi recentemente a peça no Green Theater em Tóquio, numa nova versão. Fukushima era o pano de fundo, mas de modo muito sutil. Enfim, o que eles parecem apreciar no meu teatro, de maneira geral, é justamente essa distância que dá espaço para a poesia e a ficção. Em Eu, Ota, Rio de Hiroshima, procurei mostrar a complexidade do acontecimento. Nada é simples nas grandes catástrofes. Nada é simples num conflito mundial. Mas nada é simples, também, na vida cotidiana.

No Japão, as pessoas saem de suas tragédias de uma maneira muito nobre e magnífica. A maneira como expressam essa dor é às vezes subestimada, muito discreta, mas, ao mesmo tempo, profunda. Isso foi inspirador para a sua peça desde o início?

Sim, você tem razão, os japoneses demonstram uma grande dignidade. Assim, criei o personagem do rio à sua imagem. O rio conheceu o fogo nuclear, viu o horror absoluto, mas continua a desempenhar seu trabalho de rio, incansavelmente, levando as águas da sua fonte para o mar. Desde sempre e, esperamos, para sempre. Existe um sentimento muito forte de eternidade nessa civilização. Mas, em todos os lugares onde a peça foi encenada, França, Itália, Suíça, Marrocos, é o sentimento de um lado inexorável do tempo que passa que prevalece. Vamos ver como os leitores e, espero, o público brasileiro, vai receber. É sempre um momento empolgante a ao mesmo tempo angustiante para um autor.

O senhor acredita que, na era da Netflix e outros, o teatro ainda oferece uma experiência ao vivo, ancestral?

Netflix é um recém-nascido, um bebê, na história da humanidade. O teatro existe desde sempre! Netflix é brilhante, imediata, fascinante, cativante, mas passa. O teatro é sólido, exigente, às vezes difícil, mas tem uma vantagem considerável: não se pode prescindir do outro! Não podemos consumi-lo sozinho, numa tela, num celular. Ele implica fraternidade. E isso é eterno porque vai muito além do simples divertimento. Ele nos lembra que a especificidade do ser humano é conviver um com o outro.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.