Uma mulher praticamente desconhecida foi quem conseguiu o feito de lotar o Museu Solomon R. Guggenheim (Nova York) até abril de 2019 em sua primeira grande mostra individual. Graças a ela, o museu atraiu o recorde de 600 mil visitantes, aumentou em 34% a quantidade de associados e vendeu mais de 30 mil cópias do catálogo da exposição “Paintings for the Future”. A mostra do Guggenheim foi considerada uma das 10 mais populares da arte moderna do mundo. Sua fórmula de sucesso de público e de crítica foi replicada em todos os países pelos quais circulou (Alemanha, Estados Unidos, Espanha, Dinamarca, Noruega e Estônia, por exemplo). No Brasil, foi exposta em importantes museus como a Pinacoteca.

Ela é Hilma af Klint (1862 – 1944), a mulher que descobriu a arte abstrata antes de outros modernistas. Ela foi uma inovadora radical e hoje contribuiu para uma nova compreensão da arte, pois, ao sair do anonimato, questiona as listas que citam apenas outros pintores, como Vasily Kandinsky, como pioneiros da arte abstrata. Talvez o desconhecimento de seu trabalho se deva ao fato de ela ser mulher e o mundo das artes ainda ser preconceituoso em relação a este quesito (Leia coluna que questiona porque ainda não há equilíbrio entre mulheres e homens artistas). Pode ser também que isso tenha ocorrido porque ela pediu, em testamento, para que suas pinturas abstratas só fossem reveladas vinte anos após a sua morte. Dizia que o mundo não estava pronto para entender seu trabalho. Com isso, seu nome ficou invisível até 1986, quando algumas de suas obras foram apresentadas em uma mostra coletiva em Los Angeles e que aconteceu 42 anos após sua morte.

Hilma af Klint: a mulher que criou o estilo abstrato antes dos modernistas
As Dez Maiores- n 7

Hilma nasceu em Estocolmo em 1862 e estudou na Royal Academy of Fine Arts em uma época que as mulheres só tinham espaço para serem donas de casa ou, no máximo, secretárias (ela inclusive teve esse trabalho). Gostava de frequentar círculos literários e artísticos, acabando por se envolver profundamente com o espiritualismo e teosofia, estudando a pluralidade das religiões. Rejeitou a pintura de retratos e paisagens, formando o grupo De Fem (The Five) com outras quatro artistas do sexo feminino. Em 1896, encontravam-se para sessões semanais de pintura, filosofia e religião (espiritismo/psicografia). Hilma também herdou da família um grande interesse pela botânica e matemática, o que se refletiu em sua arte, juntamente com seus interesses por biologia, física e geometria.

Sua capacidade intelectual marcou profundamente sua obra e destacou seu universo pictórico riquíssimo e extremamente particular, em um esforço para articular visões místicas da realidade.  Ela tinha um trabalho ousado, colorido e livre de qualquer referência que possa ser reconhecível no mundo físico. Ela testava os limites de seu vocabulário abstrato à medida que experimentava novas formas e temas. Suas pinturas incorporam formas biomórficas e geométricas, escalas expansivas e íntimas e uma abordagem de dualidade: matéria e espírito; feminino e masculino; religião e ciência; bem e mal; entre outros.

Curioso notar que sua produção mais marcante começou depois de seus 44 anos, uma idade considerada velha para a época. Hilma foi totalmente contra as regras do mercado de arte que, até hoje, costuma –erroneamente— achar que apenas jovens podem inovar. Ao abandonar a linguagem figurativa naturalista, começou a trabalhar a partir de uma dimensão espiritual da existência, tentando retratar o que os olhos nem sempre conseguem ver. Ao ganhar relevância e ter seu nome em destaque, abalou os pilares da história da arte e gerou incertezas sobre a verdadeira origem do abstracionismo porque seu trabalho realmente demonstra importantes descobertas abstratas antes mesmo dos grandes mestres que se consideram os papas da área.

Hilma af Klint: a mulher que criou o estilo abstrato antes dos modernistas
Mundos Possíveis

O mundo realmente não estava preparado para ela. Muitos museus e galerias do mundo não demonstraram absolutamente nenhum interesse por sua obra. Apesar da insistência de seus sobrinhos, as portas estavam sempre fechadas. Alguns curadores chegaram a comentar que não apresentariam seus desenhos porque teriam que mudar a história da arte para incluir seu nome. Felizmente, os herdeiros não desistiram: montaram uma fundação em sua homenagem para manter vivo seu legado e aguardaram pacientemente por oportunidades de exposição. Seu trabalho impressiona, ainda, pelo volume: 1.400 obras (pinturas, desenhos e aquarelas) e 26 mil páginas de pensamentos, que ainda estão sendo revelados em conta-gotas.

De todo esse portfólio, existem obras com mais de 3 metros de altura, quase o dobro da altura física da artista e absolutamente fora dos parâmetros de pintura que eram referência. Mundialmente, quem vê suas obras fica impactado pela forma, quantidade de símbolos e cores. As pinturas são coloridas e cheias de detalhes para apresentar as fases da vida – infância, juventude, maioridade e velhice. Sua memória está ganhando cada vez mais prestígio entre estudiosos de arte que nunca tinha ouvido falar de seu nome e entre estudantes de arte. Atualmente na Suécia, por exemplo, Hilma inspira o estudo da arte junto a muitos jovens e sua obra está sendo analisada em vários doutorados.

Não tinha filhos e morreu atropelada aos 82 anos. Que bom que o ceticismo não nos impediu de conhecer sua obra e tomara que, em breve, a literatura sobre arte seja realmente reescrita para que seu nome brilhe no topo da lista dos artistas abstratos, como já deveria estar acontecendo há muito tempo.

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