Mais de 80 milhões de americanos e uma porção de cidadãos de outros países sintonizaram suas tevês na segunda-feira 26 no debate entre os principais candidatos à presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton, do Partido Democrata, e Donald Trump, do Partido Republicano. O momento era ansiosamente esperado não só porque colocaria os dois frente a frente pela primeira vez desde o início de uma longa campanha, mas também os submeteria a uma rara situação de confronto com um jornalista num ambiente independente e sem roteiro – veículos como o jornal Washington Post fizeram as contas de quanto tempo Hillary ficara sem promover uma entrevista coletiva (passou de 270 dias). E Trump, enfim, teria suas afirmações escrutinadas por milhões de pessoas em tempo real. Após 90 minutos de debate, a vitória de Hillary foi praticamente consensual.

Segundo pesquisa da agência Reuters com o instituto Ipsos, 56% dos americanos consideraram que a democrata se saiu melhor, contra 26% que preferiram o desempenho do empresário republicano. Num levantamento da rede de tevê CNN com telespectadores, o placar favorável a Hillary foi de 62% a 27% e, no Public Policy Poll, ela teve a preferência de 51% contra 40%. Para Jennifer Lawless, professora do Departamento de Governo da Universidade Americana de Washington e co-autora do livro “Women on the Run: Gender, Media, and Political Campaigns in a Polarized Era” (“Mulheres na disputa: gênero, mídia e campanhas políticas numa era polarizada”, numa tradução livre para o português), os resultados dão fim ao bom momento da campanha de Trump, que vinha crescendo nas intenções de votos.

CARA A CARA Trump e Hillary se enfrentam durante o debate na segunda-feira 26
CARA A CARA Trump e Hillary se enfrentam durante o debate na segunda-feira 26

“Trump chegou ao debate confiante por uma sequência de semanas positivas, em que ele moldava a narrativa, criticava os adversários e conseguia ser levado mais a sério”, disse Jennifer à ISTOÉ. O período coincidiu com uma pausa na campanha de Hillary por causa de uma pneumonia e com dois atentados a bomba, em Nova York e Nova Jersey, e Trump atingiu a liderança em algumas sondagens tanto nacionalmente quanto em Estados-pêndulo, os mais importantes para a definição do novo presidente. “Mas essa fase boa acabou quando ele se mostrou despreparado para o debate, numa posição em que não conseguia apresentar nenhuma proposta.” Segundo Jennifer, as diversas cenas em que Hillary riu dos comentários de Trump só soaram arrogantes para parte da audiência que já apoiava o republicano.

Philip Wallach, analista de política do instituto Brookings, de Washington, afirma que, mais uma vez, Trump “redefiniu os parâmetros do discurso político americano”. “Ele não mudou suas formas hiperbólicas de provocar e intimidar a que nos familiarizamos durante os debates das primárias do Partido Republicano”, afirma. “Dessa vez, no entanto, sua adversária estava completamente composta e pronta para mostrar as fraquezas dessa abordagem.” Na disputa entre uma política muito experiente e um veterano em reality shows e programas de tevê, os debates podem ter papel ainda mais crucial na definição dos votos dos indecisos do que em anos anteriores. Isso porque a cobertura da mídia americana nessas eleições tem recebido uma série de críticas. Por um lado, os principais veículos apoiam ostensivamente a candidata democrata e perdoam vários de seus deslizes. Por outro, em busca de audiência, dedicaram espaço desproporcional a Trump durante as primárias e acabaram responsabilizados por sua irreversível ascensão.

INFIDELIDADE Donald Trump com Marla Maples: ela foi sua amante durante anos antes de se casar com ele em 1993
INFIDELIDADE Donald Trump com Marla Maples: ela foi sua amante durante anos antes de se casar com ele em 1993

Conselheira de campanha do presidente Barack Obama em 2012, a consultora Stephanie Cutter acusa o magnata de concorrer em condições desiguais. No início da campanha, quando era considerado inofensivo, Trump deu várias entrevistas por telefone ao “Morning Joe”, um popular programa matinal da tevê MSNBC. “Ele dizia coisas tão distantes da realidade apenas para entreter os telespectadores”, afirma Stephanie. “A regra é que os candidatos encarem seus entrevistadores e sejam desafiados, mas essa regra não valia para Trump.” Na era das redes sociais, isso pode ser ainda mais problemático, já que, como poucos políticos, o magnata sabe produzir manchetes – as mais absurdas – e, ainda que possam ser lidas com um viés crítico, elas são massivamente compartilhadas.

“Ela é uma típica política. Nosso país está sofrendo, porque pessoas como a Secretária Clinton fizeram decisões ruins sobre nossos empregos” – Donald Trump, sobre Hillary Clinton

Ciente do desempenho medíocre no primeiro debate, Donald Trump já começou a se preparar para o próximo, marcado para 9 de outubro. Mau perdedor, chegou a dizer na terça-feira 27 que não participaria dos confrontos seguintes se Hillary estivesse lá, porque, logo ele, se considerou injustiçado pelo tratamento concedido pelo mediador, o jornalista Lester Holt. A verdade é que o republicano reforçou a equipe que o ajudará a apresentar-se como “o elemento de mudança”, de acordo com o jornal The New York Times. Se os argumentos não funcionarem, Trump tentará desequilibrar Hillary ao trazer à tona as tão conhecidas infidelidades e acusações de assédio sexual de seu marido, o ex-presidente Bill Clinton.

“Esse é um homem que já chamou as mulheres de porcas e cadelas, que já disse que gravidez é uma inconveniência para os patrões” – Hillary Clinton, sobre Donald Trump

Na análise da equipe republicana, o assunto também poderia ajudar a arranhar a imagem de Hillary entre as mulheres e reduzir a ampla vantagem que ela tem sobre essa fatia do eleitorado. O cálculo da estratégia, porém, não pode desconsiderar os casos extraconjugais do próprio Trump. Nas últimas semanas, os jornais têm feito questão de lembrar aos americanos que seu primeiro casamento só acabou depois que seu relacionamento com Marla Maples se tornou público. Os apoiadores do republicano dizem que Trump sempre foi um homem de família, que mantém uma boa relação com as ex-mulheres e nunca utilizou o ambiente profissional para cometer os adultérios, como Bill teria feito. A forma como Trump trata as mulheres, contudo, já parece ser suficientemente degradante para que ele não consiga o voto delas.

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O desabafo da Miss

Donald Trump havia se perdido em alguns momentos do debate, mas foi no momento em que Hillary Clinton falou de Alicia Machado (foto) que ele se irritou. “De onde você tirou isso?”, perguntou várias vezes, enquanto sua adversária continuava a apresentá-la ao público. “Ele chamou essa mulher de ‘Miss Porquinha’. Depois a chamou de ‘Miss Empregada Doméstica’, porque ela é latina. Donald, ela tem um nome”, disse Hillary. Coroada Miss Universo em 1996, aos 19 anos, logo que Trump se tornou sócio do concurso, Alicia foi humilhada pelo empresário após engordar mais de 20 quilos. “Depois desse episódio, eu fiquei doente, tive anorexia e bulimia”, disse, em entrevista à CNN. A venezuelana agora é também cidadã americana e já declarou que, em novembro, votará em Hillary. “Eu fiquei realmente surpresa e comecei a chorar durante o debate. Nunca imaginei que uma pessoa tão importante quanto ela se importaria com minha história.”

Fotos: Frank Franklin II/ AP Photo; Lucas Jackson/ REUTERS; Gustavo Caballero/Getty Images/AFP