“Hilda Hilst Pede Contato”/ Direção Gabriela Greeb/ longa-metragem, 73 min, 2018/ em circuito nacional

Hilda Hilst escreveu vasta obra, composta por prosa, poesia e dramaturgia. Mas foi pouco lida — ou correspondida — em vida. Habituou-se a se movimentar nas entrelinhas. Usou o ruído branco dos aparelhos de comunicação como um território de linguagem. No chiado emitido entre as estações de rádio, criou sua “rede telefonia” para entrar em contato com amigos e ídolos mortos. Clarice Lispector, Lupe Cotrim, Franz Kafka, Albert Camus. Mas não restringiu esse meio de comunicação para aceder ao invisível e ao inaudível. Mesmo que o primeiro intuito das gravações noturnas em seu “aparelho cósmico” fosse falar com o absurdo, exercitou ali a poesia, deixando nas fitas magnéticas as marcas de seus pensamentos e versos.

Gabriela Greeb é sensível ao texto sutil de Hilda Hilst. Atendeu ao chamado (que veio por email, em novembro de 2007, com o convite de José Luis Mora Fuentes para criar um filme sobre a escritora e sua Casa do Sol) e fez um filme em que grande parte do discurso acontece nas entrelinhas do roteiro. Com isso, a diretora revela com delicadeza e tenacidade que o texto escondido nas fitas magnéticas — encontradas em uma caixa debaixo da cama da escritora — contém toda a sua potência poética. Declara isto nas primeiras sequências do filme. “Hilda Hilst Pede Contato” começa com o galope de um cavalo (“Vi as éguas da noite galopando entre as vinhas e buscando meus sonhos”, escreveu HH em “Da Noite”, 1992). O galope leva às portas da Casa do Sol, aos seus cães e ao jardim, atravessado por linhas magnéticas cortando o quadro do filme.

A voz de Hilda, extraída de 100 horas de fitas gravadas, é o fio condutor do filme. Os trechos selecionados são colados à boca da atriz Luciana Domschke, que interpreta magistralmente a escritora. Na mesa Performance Sonora, na quinta-feira 26, na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), Gabriela Greeb disse que fez um filme em primeira pessoa para que a escritora pudesse falar por ela mesma. “O filme é uma rede telefonia para ela fazer contato”, disse a cineasta, autora de “A Mochila do Mascate” (2006), documentário sobre Gianni Ratto. Assim se explica tudo: se em vida Hilda buscou, com pouco sucesso, o contato com o outro lado e com seus leitores, agora o filme lhe é oferecido como um canal de comunicação com os vivos. Coincidência ou não — entre tantas que permearam o trabalho —, o filme ficou pronto após um périplo de dez anos, em que foi recusado em dezenas de editais, justamente no momento em que a escritora é “acordada”, homenageada na Flip e consagrada como a autora mais vendida do evento.

Mas o trabalho de Gabriela faz outras conquistas importantes além de ser um projeto certo na hora certa. Se Hilda Hilst juntou putaria com metafísica, Greeb mostra que ficção e realidade também são feitas da mesma matéria. Isto é dito no entrelaçamento suave que roteiro e edição (a cargo de Karen Harley) fazem entre os depoimentos dos entrevistados, as reencenações das tentativas de contato com os mortos e a interpretação das obras literárias “Kadosh”, “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, “O Oco”, “A Obscena Senhora D” e “Matamoros” — esta última vivida pela artista visual Virgínia de Medeiros.

Outro trunfo é a desconstrução da típica divisão entrevistador/entrevistado dos documentários e a convocação dos participantes do filme a uma espécie de ato ritualístico. Depois das entrevistas — concedidas dentro de um carro que os transportou de São Paulo à Casa do Sol, em Campinas — todos se reúnem em volta da mesa da casa (hoje Instituto Hilda Hilst), comem, bebem, riem e dormem. “O filme é um ato xamânico”, endossou Vasco Pimentel, autor da mixagem e do impecável desenho sonoro do filme, em palestra na Flip.

A morte, assim como o amor e o erotismo, é o grande tema da poeta. Em 1979, quando encerra suas experiências de contato, ela dedica todo um livro ao tema. “Da Morte. Odes Mínimas” tem vários trechos declamados na película. Mas o grande tema do filme é o tempo. Ou melhor, a extemporaneidade. Fora de seu tempo, desajustada e intempestiva, Hilda Hilst retorna agora à vida.

Estante
De cor vermelha

“Hilda Hilst Pede Contato”/ Sesi-SP Editora/ 240 págs./ R$ 110/ 2018

FAÍSCAS Livro traz stills e áudios de Hilda Hilst (abaixo, em retrato de 1959): cartografia (Crédito:Divulgação)

Completa a experiência generosa criada por Gabriela Greeb “Hilda Hilst Pede Contato”, o livro. Ele fornece, entre outras joias, acesso via QR-Code aos áudios das gravações do povo cósmico, entre elas a sessão em que Hilda e Lygia Fagundes Telles declamam poemas de Lupe Cotrim Garaude, tentando contato com Paulo Emílio Salles Gomes. O livro, com concepção editorial de Greeb e Artur Lescher, confere uma dimensão espaço-temporal-sensorial ao projeto. É a sua cartografia, composta por storyboard e stills do filme, transcrições e áudios das entrevistas completas, as experiências de registro das vozes do além, o fac-símile de um caderno de HH e o diário da diretora, intitulado “Rútilos” (palavra frequente do léxico hilstiano: aquilo que resplandece, brilha intensamente, cintila, faísca. Ou ainda, de cor vermelha, cujo brilho é avermelhado). O diário traz a narrativa dos 45 “contatos” que Gabriela teve com o universo da autora nos dez anos de processo de elaboração do longa. A publicação abarca, portanto, uma dimensão pessoal, que a diretora sabiamente deixou fora do filme, embora este seja portador de uma linguagem intransferível.

Talvez a única ausência que se poderia lamentar seja o acesso aos áudios do “Jardim das Vozes”, a cena em que os convidados do ritual mnemônico promovido na Casa do Sol perambulam pelo jardim lendo poemas em voz alta, com suas vozes sobrepostas umas às outras, criando um vasto e único ruído branco (o canal eletromagnético em que dão-se as comunicações cósmicas). Assim, por todas as suas qualidades, este é certamente um livro-antena. PA

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