TEREMOS SEMPRE PARIS Ernest Hemingway: os “anos loucos” na Cidade-Luz foram abordados no livro de memórias Paris é uma Festa (Crédito:Divulgação)

Ernest Hemingway nasceu em 1899 em Oak Park, perto de Chicago, nos EUA. O seu livro de memórias, no entanto, não traz lembranças sobre a pequena cidade americana – ou de qualquer outra localizada em seu país natal. As recordações registradas em Paris é uma Festa, obra publicada três anos após sua morte, em 1964, tratam de um período específico que o escritor considerou essencial para sua formação pessoal e artística: a temporada na capital francesa, nos anos 1920. Hemingway e Paris – Um Caso de Amor, de Benjamim Santos, também não é uma biografia convencional. Vai muito além das aventuras desse ícone da literatura pela Cidade-Luz, intercalando casos pessoais com a vida cultural na cidade ao longo das décadas em que o americano esteve por lá.

A experiência em Paris levou Hemingway a incluir a cidade como cenário de suas obras de ficção. Em O Sol Também se Levanta, de 1926, o personagem Jake Barnes, nascido em Kansas City, “sobe pela Rue du Cardinal Lemoine até a Place de la Contrescarpe, onde brechas de luz cintilam pelas folhas das árvores”. Hemingway não nasceu em Kansas City, mas foi ali que, de forma indireta, brotou sua relação com a capital francesa. Foi como repórter do jornal The Kansas City Star que ele ficou sabendo detalhes sobre a Primeira Guerra Mundial. Tomado por seu espírito aventureiro, decidiu que queria participar daquilo: tentou se alistar no exército, mas conseguiu apenas uma posição de motorista de ambulância na Itália, como voluntário. Em 1918, partiu então em um navio para a Europa, aos 18 anos, com destino ao porto de Bordeaux, na França.
Antes de ir para a Itália, passou seis dias em Paris, hospedado no Hotel Florida, no Boulevard Malesherbes. Foi o primeiro contato com a guerra, onde ouviu granadas explodindo e as bombas alemãs que caíam pela região. A tensão foi aliviada por um encontro improvável: uma mulher francesa o abordou na rua e o levou para casa, onde “viveram um momento belíssimo”. Ao se despedirem, ela disse que ele jamais poderia revê-la. O jovem Hemingway passou o resto do tempo em Paris procurando por ela, sem sucesso. No último dia, antes de viajar para a Itália, ele e outros americanos tiveram seu momento de voyeurs. Ao entrarem em uma casa antiga, assistiram por acaso a um casal se beijando: era a mulher que havia seduzido Hemingway nas ruas francesas.

Hemingway esteve em Paris pela primeira vez em 1918 — foi seu primeiro contato com a guerra, tema que tanto lhe serviu de inspiração anos mais tarde

Ele voltou a Paris na década de 1920, os famosos “anos loucos”, período retratado em Paris é uma Festa. Era a capital cultural do mundo, habitada por F. Scott Fitzgerald, Pablo Picasso, Josephine Baker e Gertrude Stein, entre outros. É difícil acreditar que esse conjunto extraordinário de artistas era chamada de “Geração Perdida”, mas é preciso lembrar que Paris vivia o pós-guerra – estava destruída social e economicamente. Hemingway não era sequer uma celebridade, passava despercebido pelos jornalistas. A cidade acostumou-se a ele, da mesma maneira que ele aprendeu com ela. Vivia entre os drinques do Café de Flore e os livros da Shakespeare and Company, lendária livraria que sobrevive até hoje. Anos depois, Hemingway usaria Paris apenas como escala, a caminho de suas muitas caçadas na África. “Após uma década de convivência amorosa e uma pequena desilusão, o escritor deixou Paris e a relação entre os dois tornou-se como a dos casais que se amam ardentemente mas preferem viver em casas separadas, visitando-se com frequência” — é assim que Benjamin Santos descreve a relação do escritor com a capital francesa na década de 1950. Seu livro ganha em dimensão histórica ao narrar o contexto da arte produzida, com descrição dos diversos movimentos que moldaram mais tarde a cultura mundial.

Hemingway esteve em Paris pela última vez em 1959, dois anos antes de tirar a própria vida em Havana, Cuba, onde viveu por mais de vinte anos e que serviu de inspiração para seu maior sucesso, “O Velho e o Mar”, em 1953. A cidade deixou sua marca indelével, mas a recíproca é verdadeira. Basta entrar no luxuoso Hotel Ritz e pedir um drinque no Hemingway Bar; ou conferir o cardápio do sofisticado restaurante La Closerie des Lilas, em Montparnasse, cujo prato principal é o Filet Hemingway. Como ele mesmo definiu, “Paris vale sempre a pena, e retribui tudo aquilo que você lhe dá.” Nesse caso, uma nova biografia.