Haddad: ‘Nem trabalho com a hipótese de não resolver o tarifaço’

Em entrevista exclusiva ao Estadão, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, avalia que haverá negociação sobre o tarifaço antes do prazo determinado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, para a medida entrar em vigor, em 1.º agosto. Para o ministro, a taxa de 50% imposta pelo republicano “não faz sentido econômico” para os Estados Unidos. “Qual é o sentido de taxar suco, café, carne? São coisas que vão encarecer o café da manhã do americano”, disse Haddad.

O ministro da Fazenda evitou estimar impactos para a economia brasileira da medida e das novas investigações iniciadas pelo governo dos EUA, que citam temas como desmatamento, pirataria e até o Pix. “Os Estados Unidos deviam estar copiando o Pix. Você não se incomoda com criptomoeda e vai se incomodar com o Pix? Qual é o sentido disso?”, questionou.

Sobre a pauta econômica e a relação com o Congresso, Fernando Haddad quer que o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), abrace o projeto de lei que isenta do Imposto de Renda (IR) quem recebe até R$ 5 mil como se fosse “a reforma para chamar de sua”. Motta tem dito, por sua vez, que gostaria de aprovar a reforma administrativa e já encomendou uma proposta ao Legislativo para pôr em tramitação.

Os últimos presidentes da Câmara lideraram, cada um a seu turno, importantes reformas econômicas. Sob Rodrigo Maia, foram aprovadas a reforma trabalhista e da Previdência. Já Arthur Lira (PP-AL) aprovou a reforma tributária. “A maior reforma que ele pode chamar de ‘minha’, no caso dele, é a reforma da renda”, disse o ministro da Fazenda.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Os EUA anunciaram uma investigação comercial de várias frentes na economia brasileira, inclusive o Pix. Chegaram a mencionar a Rua 25 de Março…

Deve ter sido por minha causa, trabalhei 18 anos lá (na 25 de Março)…

De que forma o governo vai reagir a essa investigação agora que há novos elementos além da promessa de taxar 50%?

Estamos procurando qual é a racionalidade, o que está, de fato, por trás dessa iniciativa. Porque, por exemplo: nós, em maio, apresentamos uma proposta de negociação (à taxação então de 10%). Sem que houvesse sequer uma resposta à proposta que o Brasil fez, veio a taxação de 50%. Foram dez reuniões. Acho que não conta com a minha que tive com o (secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott) Bessent na Califórnia. E ele próprio, na reunião que teve comigo, disse que negociaria a tarifa de 10%, diante da minha provocação de que não fazia sentido tarifar um país deficitário em relação ao comércio de bens e serviços com os Estados Unidos. Ele falou que há espaço para um entendimento, para uma negociação. Se com 10% havia espaço para uma negociação, do que nós estamos falando? O que o Pix pode incomodar?

As empresas de cartão de crédito?

Mas vamos supor que seja isso. Você vai abrir mão de um instrumento que foi desenvolvido com tecnologia brasileira, que vai baratear as transações financeiras? Os Estados Unidos deveriam estar copiando o Pix. O Pix pode ser exportado como uma tecnologia que vai facilitar muito a vida das pessoas. Você não se incomoda com criptomoeda e vai se incomodar com o Pix? Qual é o sentido disso? É difícil compreender. É só lobby das empresas de cartão de crédito? É disso que nós estamos falando? Isso não está claro para nós. A questão do desmatamento? O presidente Trump manifesta apoio e admiração ao ex-presidente (Jair) Bolsonaro, que foi o maior responsável pelo aumento do desmatamento. Nós estamos revertendo o desmatamento. Este País vai ser penalizado? Qual é o sentido disso? Fica difícil entender.

Mas se o sr. diz que não há racionalidade econômica, o que há por trás da decisão?

Eles estão percebendo uma vulnerabilidade do Brasil em virtude do fato de ter uma força política, que é a extrema direita bolsonarista, concorrendo para os interesses americanos; eles estão aproveitando essa oportunidade. (Eles devem estar pensando:) “Quando é que nós vamos nos deparar com essa mesma situação no futuro? De uma força política, que tem capital político, estar defendendo os nossos interesses americanos. É uma oportunidade de ouro para nós colocarmos o Brasil numa situação difícil.”

Na implementação da Lei da Reciprocidade, foi criado um grupo e coube à Fazenda analisar os impactos das medidas do governo Trump. O sr. já tem os impactos das tarifas de 50% sobre a importação dos produtos brasileiros?

Nós temos esse prazo (até 1.º de agosto), que tem de ser usado com muita sabedoria. O presidente Lula não quer um arroubo, não é o estilo do presidente. Ele quer tratar com a seriedade devida. Do mesmo jeito que ele quer ser respeitado enquanto chefe de Estado, ele também respeita a soberania de outro país. Mas nós temos de usar esse tempo para encontrar o caminho da superação de uma coisa traumática.

Qual o potencial de estrago que a taxação pode ter sobre economia brasileira?

Neste momento, eu nem trabalho com a hipótese de a gente não superar esse negócio, porque vai atrapalhar a economia deles. Você tem uma forma de produzir hoje completamente diferente, as cadeias hoje são muito mais fragmentadas. Pensa na produção de um avião da Embraer: 45% dos componentes vêm dos Estados Unidos. E uma boa parte dos aviões são vendidos nos Estados Unidos. O suco de laranja é envasado lá nos Estados Unidos. Então, vai ter uma fábrica parada lá por falta do suco daqui. E qual é o sentido de taxar suco, café, carne? São coisas que vão encarecer o café da manhã do americano. Então, vai vendo como isso não faz muito sentido, do ponto de vista econômico.

O prazo até agosto é suficiente ou pode ser prorrogado?

A maioria dos empresários com quem nós conversamos diz que o prazo é bom, mas ele não resolve, porque os contratos vão sendo fechados. Se você prolonga isso também demais, vai perder muitos negócios enquanto as coisas não estão decididas. Como é que alguém vai comprar alguma coisa do Brasil sem saber a tarifa que vai incidir sobre o bem adquirido? Vai ficando difícil fazer negócio. O ideal é que haja uma força-tarefa rápida, coloque os pontos, olhe o que está pegando, o que nós podemos fazer para que possamos sair dessa situação o mais rapidamente possível. A determinação do presidente Lula é de que nós tenhamos um mapa de tudo rapidamente e que esse diálogo aconteça em bases nacionais para que o Brasil não sofra.

Trump afirmou que vai taxar o Brasil em 50% “porque eu posso”. Aparentemente, há um componente político muito forte. Como o Brasil vai negociar nesse campo político?

Acredito que a própria extrema direita brasileira vai se dar conta de que isso é um tiro no pé. A gente já viu filmes de guerra. Um soldado se sacrificar por um país é coisa rotineira. Mas um soldado sacrificar o seu país por si mesmo é uma coisa que vai dar uma série de TV. Não é possível uma coisa dessas. Nós vamos sacrificar o Brasil por causa do Bolsonaro? Ele que devia estar se sacrificando pelo Brasil. Nós estamos numa inversão de valores tão grande que preocupa o grau de falta de noção dessa família do mal, o que ela está fazendo para o País. É uma família que está toda articulada em torno de si mesma e não tem uma palavra de nenhum membro em proveito do País. São muitos empregos que podem ser afetados por uma completa inversão de valores. É um País sendo sacrificado por um soldado.

O ex-presidente Bolsonaro vem querendo se colocar como um interlocutor nesse caso para resolver a questão. Ou o filho dele, Eduardo Bolsonaro, que está nos Estados Unidos. O que o sr. acha disso?

Mas eles produziram a situação. Agora, existe um Palácio do Itamaraty, com toda a diplomacia brasileira trabalhando nisso. A pior coisa que pode acontecer é nós nos dividirmos. Você vai abrir duas mesas de negociação?

O sr. está se referindo ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas?

Não, a qualquer pessoa. Você vai ter duas mesas de negociação representando o Brasil? Faça pelos canais institucionais. E somar forças, não dividir. E quem é que vai fazer uma proposta em nome do Brasil? Qual dos 27 governadores? Não é melhor nós termos uma centralidade nas negociações? Até porque o interesse é o mesmo, suponho, que é ajudar os setores econômicos afetados. Então, não faz sentido ficar abrindo mesa de negociação. Uma com o Tarcísio, uma com o governador do Rio, uma com o governador de Minas.

O que o sr. achou de o governador Tarcísio ter saído em defesa do ex-presidente Bolsonaro?

Eu me manifestei sobre isso. Eu considero estranhíssima a posição dele e repito: uma pessoa que tem as pretensões que ele parece ter não pode se comportar como um vassalo de outro país, como se fosse um serviçal de outro país. Isso é indigno. E recebeu, até onde eu li, o devido tratamento de vários editoriais repreendendo esse comportamento abjeto, que não concorre para a solução do problema.

Em relação à investigação comercial dos EUA sobre o Brasil, anunciada nesta terça-feira, alguns pontos foram elencados. De que forma o governo vai rebater ponto por ponto?

É o que nós estamos fazendo. A cada manifestação dos Estados Unidos, a nossa resposta tem sido de esclarecimento. Agora, é estranho, né? Um presidente de um país querer taxar o Pix de outro país? Além de taxar as exportações, ele vai taxar o Pix? Porque ele vai encarecer os custos de transação financeira no Brasil.

Agora sobre questões fiscais do Brasil. Além do IR e das medidas do IOF que o sr. avalia que são para fechar brechas, como na previdência privada, há mais alguma medida de justiça tributária que podemos esperar?

A medida provisória 1303 (que compensa os recuos no decreto do IOF). Foi instalada a comissão especial, e ali o que é que tem? Bets ficaram quatro anos, durante o governo Bolsonaro, sem pagar imposto nenhum, como se fossem uma entidade filantrópica. Os cálculos aqui da Receita são de que o governo Bolsonaro abriu mão de R$ 40 bilhões em quatro anos de arrecadação de bets.

Tem outras medidas, ministro, nessa linha de justiça tributária, além do que já está na mesa?

Não.

O sr. já falou que sente falta de discutir e rever questões mais estruturais como o piso de Saúde e Educação, até pela forma como o Orçamento brasileiro está engessado. Ainda tem espaço?

Você está mexendo com duas áreas muito sensíveis, que têm demandas muito urgentes, sobretudo a Saúde que é subfinanciada – lembrando que nós temos um sistema universal. Tem tanta coisa que precisa ser revista imediatamente que nós estamos negociando. Está lá o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) negociando com a (ministra da Gestão) Esther Dweck sobre a questão da reforma administrativa. Tem uma série de medidas de saneamento dos cadastros, de programas que estão com uma trajetória explosiva de gastos, que teve uma decisão recente agora do Conselho Nacional de Justiça disciplinando a matéria. Então, tudo isso tem de ser feito. Nós, com o apoio do PT e tudo mais, revimos a política de valorização do salário mínimo, mantendo ganhos reais acima da inflação, portanto, assim como do avanço salarial.

Mas o sr. acha que isso é suficiente para discutir o engessamento do Orçamento? Por que não discutir o índice de correção dos pisos de Saúde e Educação para que se adequem ao do arcabouço fiscal? O arcabouço fica de pé sem esse debate?

Ele fica de pé, mas veja bem: quando você não consegue aprovar o mais fácil, qual é a expectativa de conseguir aprovar o mais difícil? Nós não estamos conseguindo aprovar o mais fácil. Nós temos de ter uma conversa franca, porque dependo de voto. Não adianta você mandar uma coisa para lá (Congresso) para ficar bem perante a Faria Lima e não ter noção de como as coisas vão se processar. A Fazenda nunca se indispôs a discutir nada. Se falava que a reforma administrativa ia salvar o Brasil; está lá o deputado Pedro Paulo, vai apresentar a proposta. Vamos ver.

Em outra frente, também tratando da questão fiscal, o presidente da Câmara, Hugo Motta, tem defendido a reforma administrativa como se quisesse uma reforma para chamar de sua.

A maior reforma que ele pode chamar de “minha”, no caso dele, é a reforma da renda. Você imagina ser o presidente da Câmara dos Deputados que patrocinou a aprovação de uma medida histórica, que nunca foi sequer tentada por governo nenhum? Eu, no lugar dele, abraçaria essa causa.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.