O infectologista David Uip é destas figuras públicas que não têm muito medo de se envolver em polêmicas. Há anos fala abertamente sobre os comportamentos que levam as pessoas a se infectarem pelo HIV, o vírus da Aids, e, mais recentemente, nos embates sobre ações e responsabilidades envolvendo o combate da febre amarela no País. No comando da secretaria estadual de saúde do estado mais rico do Brasil quando o surto explodiu justamente em São Paulo, no início do ano, Uip recebeu críticas de todos os lados: da população em geral, médicos, estudiosos do tema. Em abril, aos 66 anos, ele finalmente deixou o comando da pasta após quase cinco anos. Reconhece as dificuldades que o estado enfrentou para informar a população corretamente, mas está satisfeito com o trabalho. “Poderia ter sido uma situação muito pior do que a foi”, disse na entrevista a seguir à ISTOÉ.

O senhor foi Secretário da Saúde de São Paulo, dirigiu o Instituto do Coração e hospital Emílio Ribas. O que deu mais trabalho?

O mais difícil foi ser secretário. Peguei a pior crise financeira da história do País e mais cinco problemas estrondosos: epidemia de H1N1 (subtipo do vírus Influenza, causador da gripe suína), zika, chikungunya, dengue e febre amarela. Nesse período, o estado deixou de arrecadar R$ 26 bilhões. Levando em consideração que 12% do coletado são direcionados à saúde, deixaram de ser destinados à área R$ 3 bilhões. O governador Geraldo Alckmin (que deixou o cargo para concorrer à presidência da República) aumentou o percentual de 12 para 13,9% e não deixou faltar dinheiro. Mas isso foi feito em cima de uma crise enorme. E as pressões ocorrem 24 horas por dia.

Aprendeu a lidar com elas?

O sensacional é ser respeitado pelo não. Nunca falei o que não era. É preciso ser transparente.

Uma das queixas da população em relação ao estado é justamente a de não ser transparente nas ações e informações. O que o senhor diz?

Tem muita coisa imaginária que vira história e depois é difícil de controlar.

Poderia dar um exemplo?

O que aconteceu com a febre amarela. Os casos registrados continuaram sendo silvestres (ocorreram em áreas de mata), mas é preciso explicar porque aumentou o número de infectados. Fui perguntado sobre como eu me sentia sendo secretário de saúde do estado mais rico do país tendo que conviver com o reaparecimento da doença. Respondi que, por um lado, havia mesmo esta questão. Mas foi este mesmo estado que providenciou o primeiro transplante de fígado em um paciente com febre amarela no mundo. Assim é a vida. Mas em situações desta natureza sempre é preciso achar um culpado para pagar o pato.

Mas quem seria o culpado, então, pelo aumento do número de casos tão expressivo em São Paulo?

De um lado temos uma doença difícil de explicar, que quando exige internação leva à morte em 40, 50% dos casos. Aí você sugere como prevenção uma vacina imperfeita, que apresenta efeitos adversos, inclusive morte. Depois da corrida aos postos pela vacinação, com gente invadindo unidades, a campanha de imunização não atinge 60% dos objetivos. A população não acreditou, ou pelo menos parte dela não acreditou, na vacina fracionada, que é de fato uma novidade real, resolutiva. Combinado a isso tudo, vieram as notícias falsas, os absurdos. As pessoas saíram matando macacos! Ficamos disponíveis para a imprensa 24 horas por dia, mas assim mesmo foi a loucura que todos nós vimos. Foi muito complicado. E ainda tivemos aqueles que queriam aproveitar os cinco minutos de fama. Não tinham ideia do que estavam falando e saíram acusando o estado de ter sido irresponsável.

O que o senhor argumenta em contrário?

São Paulo foi espetacular. Não eu, mas o pessoal do controle de endemias, da vigilância epidemiológica. O que esses caras fizeram… eles demarcaram os caminhos ecológicos da evolução do vírus, sabiam para onde o mosquito iria antecipadamente. Eu era informado dois meses antes de o vírus chegar em determinado local. Se não fosse isso tudo, esses cuidados, a febre amarela em São Paulo teria sido uma tragédia, uma situação muito pior do que a foi. É preciso fazer um documentário ou algo do gênero mostrando que há o lado certo e errado dessa história. Foram fatos muitos interessantes.

Quais, por exemplo?

Descobrimos várias coisas, como o fato de que o mosquito adquiriu uma velocidade algumas vezes maior do que a que sabíamos. Ele andou mais quilômetros em menos tempo.

O que acha que acontecerá a partir de agora?

A febre amarela será controlada. Vacina todo mundo e acaba com a história. Com a dengue, as populações suscetíveis vão se esgotando. Há quatro subtipos de vírus. Uma hora, determinada população já teve contato com os quatro. E por que a doença brota? Porque nascem pessoas. Em relação à zika sempre achei que seria o que estamos vendo. O vírus veio e foi. Já com a chikungunya é complicado porque é uma doença crônica. A pessoa tem dores por meses. Agora, o que vem por aí são casos de H3N2 (subtipo do vírus da gripe). Houve muitos casos na Europa e nos Estados Unidos. Mas temos uma vacina competente que protege inclusive contra ele.

E em relação à Aids?

Foi a maior decepção pessoal da minha vida. Estamos vivendo o aumento do número de casos em jovens, principalmente em homens que fazem sexo com homens. Aqui na clínica vejo novos casos direto. E deveria ser algo que estivesse sob controle. As pessoas estão informadas. Quem é que não sabe como se proteger? Mas os indivíduos chegam aqui contando que tiveram relações desprotegidas.

E por que razão o senhor considera essas escolhas uma decepção pessoal quanto ao seu trabalho?

Porque eu falo sobre isso desde 1982, todos os dias da minha vida. Eu e todos nós não conseguimos capilarizar ou manter a informação. Quando se fala de Aids hoje? No carnaval e no dia 1 de dezembro (dia mundial da Aids). Falta um movimento público de continuidade de prevenção.

Como gestor público durante anos, não se sente responsável por isso?

Há um pacto federativo. Esse tipo de política pública cabe ao Ministério da Saúde. Em São Paulo fizemos tudo o que era possível em termos de prevenção. Mas também não foi suficiente e nem eficiente. Na verdade não dá para culpar alguém ou uma instituição. É um problema de toda a estrutura.

O que dizem os pacientes que chegam ao seu consultório recém-infectados?

Converso e pergunto “você não sabia?”. As pessoas respondem que hoje tem remédio, que a Aids não mata mais da forma que matava. Isto é verdade. Mas poucos sabem que tomar medicamento contra a Aids é muito ruim, eles têm vários efeitos adversos. No entanto, isso não está claro para as pessoas que se expõem. E há também a prevenção pré-exposição. O indivíduo acha que fazendo a “prep” está desobrigado de usar camisinha. E aí ainda pega várias outras doenças sexualmente transmissíveis: sifilis, HPV, hepatite por vírus. Há também outras duas coisas aqui: comportamento e impulso. Os jovens estão bebendo muito, se drogando muito.Há pessoas que chegam aqui e não se lembram o que aconteceu. Outros caem no golpe do “boa noite cinderela” (são drogados sem terem ciência). É uma loucura. Eu já disse que droga é bom e camisinha, horrível. Continuo afirmando, pois é a pura verdade. Você vai dizer para quem usa que não é bom? Que camisinha é o melhor dos mundos? Não. Mas é a vida e a morte. É isso o que estamos discutindo.

Como foi seu relacionamento com os governos da ex-presidente Dilma Rousseff e, agora, de Michel Temer?

Passei por seis ministros. Isso é uma loucura. Hoje digo com tranquilidade que para você conhecer uma secretaria de estado precisa de seis meses para entender tudo. Imagine um ministro para compreender o que está acontecendo, apoderar-se dos fatos. Demora. E eu passei por seis!

O senhor recebeu ordens de prisão por descumprimento de decisões judiciais que determinavam fornecimento de remédios. Como médico, de que maneira se sentia nessas situações?

Sou um gestor público e tenho que fazer escolhas. Em 2016, a judicialização chegou a consumir 1,2 bilhão de reais. E não veio dinheiro novo no orçamento. Há a judicialização que acho pertinente porque diz respeito aos direitos do cidadão. No entanto, têm as inaceitáveis. O estado é judicializado a comprar sabonete íntimo, achocolatado, água de coco, remédio para cachorro. E há a judicialização que tem como objetivo o crime, para fraudar. Pegamos vários casos.

O senhor não se sentia dividido, até pela experiência de continuar atendendo seus pacientes mesmo durante os mandatos como secretário?

Houve uma judicialização para fazer transplante de coração. Minhas teses de doutorado e de livre docência foram em transplantes. Eu sei o quanto é justo. Mas como eu faço para viabilizar um transplante em 48 horas? Mato alguém? Outro exemplo: me coloco no lugar de um pai cujo filho precisa de um transplante multivisceral. Vou querer tudo para o meu filho. Porém, como o estado investe US$ 4 milhões nisso? O pior é quando você recebe ação judicial que te obriga a internar alguém. Isso quebra os paradigmas do SUS porque passa um cidadão na frente do outro na fila. Outro grande problema: 64% dos pedidos judicializados são oriundos de clínicas e hospitais privados. Portanto, vêm de gente que pode pagar advogado, justamente os que têm mais recursos.

O senhor será candidato a algum cargo político?

Não. Sou bom médico e fui um bom secretário. Mas sei meus limites.