Na ressaca eleitoral, pós-resultados do primeiro turno, existe, em parte daqueles que enxergavam a cruenta batalha entre a democracia e a barbárie, um misto de desânimo e surpresa. O tsunami bolsonarista que varreu o mapa político do País foi avassalador, não há dúvida. Os votos refluíram para o buraco negro do retrocesso, tomaram a forma de um conservadorismo extremista e foram derrubando todas as previsões e estatísticas que viam pela frente. São Paulo, o maior colégio eleitoral do Brasil, operou como o epicentro desse efeito sísmico que fez crescer a onda.

Como pôde? O movimento de claros sinais fascistas do capitão do Planalto, que promoveu uma gestão genocida e inconsequente, emplacou o maior esquema de distribuição secreta de recursos públicos, armou os brasileiros, tripudiou sobre pobres, mulheres, indígenas, minorias de qualquer ordem e incitou o preconceito desmedido, recebeu aval para continuar na mesma toada. O eleitor lhe deu votos a rodo, reconduzindo ou escolhendo boa parte de seus representantes. Ele levou nada menos que 20 senadores de uma só sentada, quase 100 deputados federais pelo partido que lhe dava guarida, inúmeros governos estaduais (os mais fortes estão com ele, desde São Paulo, que deverá escolher Tarcísio de Freitas, até o Rio com o atual Cláudio Castro, Minas, por intermédio do aliado Romeu Zema, Paraná e RGS, que podem entrar na conta).

Foi um verdadeiro strike da política a seu favor. Ainda que o opositor Lula vença ao final da disputa majoritária, terá imensa dificuldade para governar sem uma inflexão aos ditames da centro direita e direita extrema. Bolsonaro já pode se considerar uma espécie de primeiro-ministro, independentemente do que saia de resultado no próximo dia 30. Se não de direito – porque a Lei não permite –, será de fato essa figura de influência nas decisões, primeiro-ministro com imensa força paralela, mandando em quaisquer dos cenários que possam surgir.

Não há como refrear o diagnóstico diante de quadro tão dantesco: há algo de podre no reino do Brasil — com a devida licença do bardo inglês, William Shakespeare, no uso revisto de uma das célebres frases de sua obra. Os números do último domingo confirmam a sólida mudança de eixo rumo a um obscurantismo de preceitos e propostas que, levado ao pé da letra, pode ser por deveras perigoso. O pelotão de infantaria do bolsonarismo, já formado, não deixa dúvidas quanto à ofensiva de ocupação: está tudo dominado. Foi um massacre.

O escrutínio, por tabela, transformou o Congresso Nacional em um reduto cativo do Centrão, subjugando legendas tradicionais como o PSDB, MDB e adjacências, na maior reformulação de forças partidárias jamais registrada. O PL, agremiação do presidente, com o seu arrasta quarteirão, emerge para comandar o parlamento. Deve acabar por escolher os futuros presidentes das duas casas dos congressistas. Fenômeno indiscutível. É possível tirar preciosas lições dessa onda. O deslocamento de apoios, mesmo de bolsões da esquerda – como aqueles que antes davam endosso ao pedetista Ciro Gomes –, mostra que o baixo clero, movido a emendas do relator, irá ditar as regras porque a massa predominante de votantes foi mesmo arrebatada pelo chamado populismo de cooptação.

Tal populismo distribui benesses – como o desconto ilusório e temporário de combustíveis, o barateamento artificial de energia e a martelação de promessas vagas – em troca do aval para seus planos de poder. Muitos resolveram de última hora entregar o destino nas mãos do bolsonarismo que, para alguns, já é maior que a própria figura do mandatário. Suprema controvérsia: o personagem histriônico, embora repudiado, encarnou o ideal de “moderação” e saídas que o povo deseja. O apedeuta das fake news deu certo mais uma vez, após a surpresa de sua unção em 2018. Como se constata agora, não era uma mera nuvem passageira. A tempestade de seus descalabros encontrou morada fixa por aqui. Triste Naçãovergada a tantos absurdos. A narrativa, naturalmente falseada, de realizações tomou o lugar dos fatos e evidências. O Brasil se viu rachado entre a opção dos ricos sulistas e pobres do Nordeste, quase como num apartheid, não apenas social como também ideológico. O status quo do poder vai vencendo, para reeditar a história de submissão dos menos favorecidos. Não deveria ser assim. Porém as elites não encontram, nem desejam, limites de concessão.

Em um País já tomado por 33 milhões de miseráveis esfomeados, a desigualdade torna a triunfar porque assim querem aqueles que, tradicionalmente, mandam pela força do dinheiro.