“Chegamos ao destino em 13 de janeiro de 1824, com mais pessoas a bordo do que partiram de Brecherbach, pois além de dois mortos, houve 16 nascimentos”, escreveu o pastor luterano Friedrich Oswald Sauerbronn (1784-1864) aos seus amigos que ficaram no Velho Mundo. Ele estava relatando a chegada ao Rio de Janeiro do navio Argus, que trouxe ao Brasil 284 imigrantes de língua alemã – inclusive o próprio pastor.

O Argus tem uma importância grande para a imigração alemã no Brasil – embora, oficialmente, considere-se como marco oficial dessa imigração o 25 de julho de 1824, data da fundação da colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul.

“Foi o primeiro navio dentro daquele convencionado como primeiro período oficial da imigração alemã no Brasil, que compreende os anos de 1824 a 1830”, explica o pesquisador Ademar Felipe Fey, autor do livro Navio Argus – Ano 1824: Imigração alemã no Brasil.

Vale ressaltar que a Alemanha só passou a existir como país em 1871, por isso é mais correto se referir a esses colonos como pessoas “de língua alemã”. Segundo conta a historiadora Daniela Rothfuss, coordenadora cultural do Instituto Martius-Staden, a maioria dos imigrantes a bordo do Argus era das regiões de Oldenburg – atualmente parte da Baixa Saxônia – e Hesse, hoje um estado na região central do país.

“O termo ‘alemães’ está ligado a uma identidade linguístico-étnico-cultural, mais do que à ideia de nacionalidade política. As primeiras levas, até 1830, contavam com imigrantes de outros países de língua alemã na Europa, como Suíça e Áustria, mas a maioria era de regiões que formam a Alemanha moderna”, explica o gestor público Sylvio Zimmermann, secretário de Cultura de Blumenau.

Rothfuss pontua que o navio trouxe “um dos primeiros grupos fechados” de imigrantes ao Brasil. E foi o primeiro navio de imigrantes a oficialmente desembarcar após a Independência, em setembro de 1822.

Bahia e Rio, antes do sul do país

“Antes de 1824 houve algumas tentativas de estabelecer colônias com imigrantes alemães na Bahia”, pontua Fey. Também foi criada a colônia de Nova Friburgo, no Rio, inicialmente com imigrantes suíços – destino de boa parte dos que vieram no Argus.

Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e autor do livro Imigração alemã no Rio Grande do Sul, o historiador Jorge Luiz da Cunha ressalta que “quando chegaram ao Rio de Janeiro, foram todos [os que vieram no Argus] destinados à colônia alemã de Nova Friburgo, fundada antes da Independência do Brasil”.

Ele considera “cientificamente que os verdadeiros primeiros imigrantes do Brasil Independente foram as 39 pessoas que partiram de Hamburgo, na Alemanha, a bordo do navio Caroline, em 17 de dezembro de 1823” – ou seja, os que fundariam a colônia de São Leopoldo.

“Como essas colônias [da Bahia e do Rio] não atenderam às expectativas do Império, o que viria acontecer apenas com a de São Leopoldo, a data oficial do início da Imigração Alemã no Brasil foi convencionada em 25 de julho”, ressalta o pesquisador Fey.

Tempestades e piratas

Não foi fácil a saga enfrentada pelos imigrantes a bordo do Argus. Segundo a carta do pastor Sauerbronn, cheia de detalhes, o grupo saiu de Frankfurt, atual Alemanha, para Amsterdã, em maio de 1823. Lá embarcou no navio que o traria para o Brasil, em 24 de julho. Mas uma tempestade acabou quebrando o mastro do navio ainda no Mar do Norte, obrigando um retorno de emergência ao porto inicial e uma longa espera pelo conserto.

De acordo com a jornalista e pesquisadora Adriana Sauerbronn de Moura, descendente direta do pastor luterano, a nova partida ocorreu apenas em 10 de setembro. Mas a viagem seguiu acidentada.

Primeiro, uma tempestade obrigou o Argus a fazer escala de 11 dias num porto da Inglaterra. Próximo às Ilhas Canárias, a tripulação foi atacada por piratas africanos. “Só que quando o capitão pirata subiu ao navio, percebeu que só havia gente mais pobre que ele, então ofereceu suprimentos como frutas frescas e bebidas para os colonos”, conta Moura. E aí o próprio pastor relata que em 13 de janeiro o grupo aportou no Rio com mais gente que na partida – por causa de duas mortes e de 16 nascimentos.

Curioso que alguns desses eventos estavam diretamente ligados ao pastor. Em 17 de novembro de 1823, durante a travessia, a esposa dele, Charlotte, deu à luz a um menino saudável, Peter Leopold. No dia seguinte, contudo, ela morreu em decorrência de complicações do parto.

Sauerbronn desembarcou no Brasil com sete filhos pequenos para criar. O caçula Peter acabaria morrendo um mês depois, de disenteria. “Essa imigração para Nova Friburgo acabou sendo um pouco esquecida. Primeiro porque a imigração para o Rio Grande do Sul foi muito mais numerosa, segundo porque a terra onde eles foram colocados não era muito fértil, então foi difícil se manterem ali”, explica Moura.

Um projeto oficial de povoamento

Fato é que o Argus foi uma tentativa inicial de um projeto que depois acabaria adaptado para o sul do país, onde efetivamente funcionou. Em 1822, José Bonifácio (1763-1838), então ministro das Relações Exteriores, enviou um major para as cortes alemãs da Europa, encarregando-o de recrutar colonos.

“A ideia inicial era enviar os imigrantes para a Bahia ou Nova Friburgo, uma colônia suíça criada na serra fluminense em 1819”, diz Zimmermann. “Mas D. Pedro 1º e Bonifácio mudaram os planos: resolveram estrategicamente povoar a Região Sul. Assim, as levas seguintes de imigrantes foram enviadas para São Leopoldo, próximo de Porto Alegre.”

Os colonos eram, em sua maioria, artesãos ou trabalhadores rurais, gente que havia empobrecido em consequência da industrialização e das guerras napoleônicas. Formavam “um excedente populacional na Alemanha, que era procurado pelo Brasil recém-independente”, relata Zimmermann.

“Os imigrantes de língua alemã fugiam da pobreza e da fome, causada pelo fim da servidão feudal no início do século 19 […], por iniciativa da Prússia, como estratégia das necessidades urbanas da nascente indústria”, completa o historiador Cunha.

Conforme informa o livro 1824: Como os alemães vieram parar no Brasil, do historiador Rodrigo Trespach, os recrutados eram famílias ou homens solteiros. Os que podiam arcar com os custos da viagem recebiam terras, sementes e animais para recomeçarem a vida. Os que não tinham como pagar eram obrigados a servir no exército por quatro anos antes de receber as terras. No início, a operação era financiada pelo governo brasileiro. “Os imigrantes alemães recebiam recursos”, corrobora o historiador Cunha. “Os custos da imigração eram cobertos pelo governo do Brasil independente.”

Discrepância nas datas

Os registros do Arquivo Nacional, notas de jornais da época arquivados pela Biblioteca Nacional, a carta do pastor luterano e todos os especialistas ouvidos para esta reportagem confirmam o 13 de janeiro de 1824 com dia da chegada do Argus ao Rio. Contudo, diversos textos já publicados sobre a saga apontam para outras datas, principalmente 7 de janeiro.

Segundo os pesquisadores, o mais provável é que se trate de um equívoco antigo que acabou sendo reproduzido sem checagem – ou, como diz Zimmermann, pela “falta de consulta às fontes originais”. “Infelizmente, existem fontes históricas diferentes”, esclarece Rothfuss.

Fey aponta uma outra possibilidade: as diferentes datas indicariam diferentes momentos: “A discrepância pode ocorrer pela informação de entrada na baía do Porto, avistamento da cidade do Rio de Janeiro, etc.”