28/09/2021 - 7:51
Apesar de conter falhas, lei é considerada uma das mais importantes da história brasileira. “A partir de então, os senhores deixaram de dominar totalmente os corpos das escravizadas e seus filhos”, comenta historiadora.Em 28 de setembro de 1871, foi publicada no Brasil a lei 2.040, que entraria para a história como Lei do Ventre Livre. Pela norma, todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir de então não seriam considerados escravos. Era mais um capítulo dentro do longo e tardio processo abolicionista brasileiro, que somente extinguiria a escravidão em 13 de maio de 1888 — o último país ocidental a fazê-lo.
Mesmo que a promulgação da Lei do Ventre Livre tenha sido apenas um passo para o caminho da liberdade total, especialistas ouvidos pela DW Brasil concordam que se trata de uma das leis mais importantes da história brasileira. Isso porque, além de inviabilizar a escravidão a médio prazo — já havia uma lei que proibia o tráfico negreiro, a Eusébio de Queiroz, de 1850 —, ela tinha dispositivos que facilitavam o processo de compra de alforria e a formação de associações abolicionistas.
“A lei de 1871 foi feita para ser a lei definitiva da extinção da escravidão. Dizia-se dela uma lei emancipacionista que, gradativamente, previa que não seria mais possível ter escravos e, aos poucos, a escravidão acabaria”, afirma a historiadora Wlamyra Albuquerque, professora na Universidade Federal da Bahia e a autora do livro Um Jogo de Dissimulação: Abolição e Cidadania Negra no Brasil.
A partir dessa norma, os proprietários de escravos passaram a não ter mais controle total e irrestrito sobre os corpos das mulheres escravizadas — mesmo que elas, as mães, não tivessem tido nenhum outro benefício senão a expectativa de liberdade de seus futuros filhos.
Lei driblada
“A lei foi fortemente criticada pelos donos de escravos que viram nela uma interferência nas relações entre senho e escravo, vistas por eles como um assunto privado e que não deveria ter a gerência do Estado”, comenta a historiadora Renata Figueiredo Moraes, professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “A partir de então, os senhores deixaram de dominar de forma completa os corpos das mulheres escravizadas e seus filhos.”
Em outras palavras, as escravas passaram a deixar de ser vistas como reprodutoras.
Mas, conforme Albuquerque ressalta, logo os proprietários de escravos entenderam que havia maneiras de “driblar a lei”. “Principalmente porque ela previa a garantia, aos senhores, da tutela sobre as crianças que nasciam de ventre livre, até os 21 anos”, explica.
Obviamente que eles eram tratados como escravos nesse período. Nesse sentido, diz a professora, a lei “criava a expectativa da liberdade sem desfazer os vínculos de subjugação”.
Pressão internacional
Não foi uma legislação feita por bondade governamental, evidentemente. Naquele período, o Brasil sofria uma forte pressão internacional por ocupar a incômoda posição de única nação independente escravista das Américas. Aos esforços abolicionistas britânicos somava-se a Guerra Civil norte-americana, de 1861 a 1865.
“Com a vitória do norte e a abolição da escravidão no sul dos Estados Unidos, a saída de cena daquela que era a principal sociedade escravista do século 19 fragilizou, em termos geopolíticos, a escravidão no Brasil”, afirma o historiador Alain El Youssef, pesquisador na Universidade de São Paulo e autor do livro Imprensa e Escravidão: Política e Tráfico Negreiro no Império do Brasil.
Pesquisador na Universidade Estadual de Campinas, o historiador Philippe Arthur dos Reis aponta que, naquele momento, havia o entendimento de que o Brasil era um país “predestinado a ser agrário” e que isso norteava também os debates sobre o uso da mão de obra escrava. “O império brasileiro estava consolidado, com o governo estabelecido. Existia uma pressão externa para isso [para abolir os escravos]”, diz.
“Nessa época, alguns dirigentes imperiais passaram a formular projetos para dar início ao que era eufemisticamente denominado de 'encaminhamento da questão servil'”, pontua Youssef. Ao mesmo tempo, o movimento abolicionista se fortalecia, inclusive com a criação de uma série de sociedades que se organizavam para a libertação, via compra de alforria, de escravos urbanos.
Considerando essas cartas que estavam à mesa, o historiador conclui que, no fundo, a Lei do Ventre Livre foi uma maneira de o governo controlar as rédeas do processo abolicionista, evitando conflitos — em suas palavras, sem a “repetição do derramamento de sangue que havia ocorrido nos Estados Unidos”.
“A lei de 1871 tinha por objetivo ser a palavra final do Estado brasileiro sobre o tema da abolição”, diz Youssef. “Isso foi obtido nos anos imediatamente posteriores à sua aprovação: no plano externo, ela permitiu ao Império vender a imagem de que ele havia dado encaminhamento à abolição; no interno, desmobilizou os setores urbanos que reivindicavam uma solução gradual para o problema.”
Efeitos positivos da lei
Para o historiador Youssef, a Lei do Ventre Livre pode ser considerada “uma das legislações mais importantes da história brasileira”. Mas para entender sua importância é preciso avançar sobre outros pontos, além do aspecto de, em tese, ninguém mais nascer sob o jugo da escravidão no país.
“É uma lei complexa e tinha outros dispositivos que acabavam reconhecendo direitos dos escravizados”, elenca Albuquerque. “Reconhecia o direito do escravizado de acumular pecúlio, valor necessário para que ele comprasse sua alforria e tentasse negociar a compra com o senhor. E caso o senhor se recusasse a negociar a alforria, o escravizado poderia constituir um procurador e procurar a Justiça.”
Para ela, este foi o principal ganho que a população escravizada teve, na verdade, com a Lei de 1871. “[Foi consequência dessa lei] a expansão da procura pela Justiça por parte de escravizados conscientes de seus direitos, isso é, a ampliação da linguagem de direitos e a expansão de um leque de possibilidades para a conquista da liberdade”, concorda o historiador Felipe Azevedo e Souza, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio.
Souza ressalta que a legislação consolidou a ideia da intervenção estatal na esfera privada, no que tange às questões do chamado “domínio senhorial” e suas relações com os escravos — “muitas vezes, em favor destes últimos”, pontua ele.
Outro ponto interessante é que a Lei do Ventre Livre determinava a criação de fundos de emancipação, destinados às províncias e municípios. “Esses fundos foram também administrados por associações civis, as associações emancipacionistas, que era procuradas com frequência por escravizados ciosos da conquista de liberdade. Essa constante interação acabou por formalizar redes de atuação entre figuras bem relacionadas da sociedade, que geriam os fundos, principalmente profissionais liberais, comerciantes e estudantes, com libertos e escravizados”, contextualiza Souza.
Ou seja: mesmo que esse ponto não costume ser o mais lembrado, a Lei do Ventre Livre acabou fomentado a criação e auxiliando a manutenção de uma série de agremiações abolicionistas.