Quando “The Ecstasy of Gold”, trilha sonora de Ennio Morricone para o filme “Três Homens em Conflito”, explode nas caixas de som do San Francisco Chase Center, nos EUA, os fãs do Metallica já sabem o que vai acontecer. O épico tocado pela Sinfônica de São Francisco é a introdução para os guitarristas James Hetfield e Kirk Hammett, o baixista Robert Trujillo e o baterista Lars Ulrich subirem ao palco. A diferença, aqui, é que no show que deu origem ao álbum “S&M2”, o Metallica divide o espaço com 80 músicos eruditos, além do diretor musical da orquestra, Michael Tilson Thomas, e o maestro Edwin Outwater. Produzido por Greg Fidelman, o repertório traz duas horas e meia de sucessos da banda, como “For Whom the Bells Tolls”, “One” e “Enter Sandman”. A superprodução também rendeu um filme dirigido por Joe Hutching. A mistura de heavy metal e música erudita gera uma massa sonora bastante coesa, surpreendente para quem acha que os estilos são antagônicos.

Há mais semelhanças entre o rock pesado e o sinfônico do que imagina a nossa vã filosofia. O virtuosismo dos músicos, as melodias sofisticadas, as mudanças constantes de andamento, todos esses elementos estão presentes tanto no som da banda, quanto no da orquestra. Os vocais de Hetfield mantêm a contundência, mas a agressividade é bem menos chocante que seria de se esperar. Há um equilíbrio interessante, fruto de uma primorosa equalização nos volumes – tarefa hercúlea executada de maneira primorosa pelo produtor. Quem gosta do Metallica vai aprovar, mas quem prefere música erudita também pode ficar positivamente impressionado. Afinal, música só tem dois estilos: boa e ruim – e aqui ela é excelente.

ORIGINALIDADE E VIRTUOSISMO
Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura

Divulgação

 

Não é à toa que compositores como Mozart, Beethoven, Stravinsky e Wagner, entre outros, são grandes influências para diversos músicos de Heavy Metal. Randy Rhoads, guitarrista de Ozzy Osbourne, “emprestou” do compositor cubano Leo Brower a harmonia do “Estudo Simples #6” para criar a faixa que batiza o álbum “Diary of a Madman”. Tony Iommi, guitarrista do Black Sabbath e considerado o inventor do Heavy Metal, foi buscar na idade média a influência da música barroca para “Children of the Grave”, além da belísssima peça de violão “Orchid”. Jon Lord, tecladista do Deep Purple, já havia feito essa fusão em 1968, no álbum “Concert for Group and Orchestra”, gravado ao vivo no Royal Albert Hall, em Londres. O próprio Sepultura experimentou com instrumentos sinfônicos, mais intensamente no último álbum “Quadra”, lançado em fevereiro desse ano.

O Metallica seguiu essa tradição com maestria, originalidade e virtuosismo graças a dois músicos geniais e corajosos: o guitarrista James Hetfield e o baixista Cliff Burton. Apesar de ter falecido em 1986, Burton ainda não foi igualado dentro do estilo. Hetfield é um compositor único, capaz de escrever temas leves e melódicos ou riffs pesados e técnicos. A dupla teve forte influência de música clássica, mais perceptiva em temas como “The Call of Ktulu”, “Master of Puppets”, “Nothing Else Matters” e a obra-prima de Burton, a instrumental “Orion”. A parceria com uma orquestra era questão de tempo.

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A junção do Metallica com a Sinfônica de São Francisco aconteceu pela primeira vez em 1999, mas em “S&M2”, eles aproveitaram melhor essas possibilidades. Um solo de violoncelo em “Anesthesia”, composição de Burton, foi
uma boa sacada. Outra coisa interessante foi ver James Hetfield explorando melhor o seu lado tenor e cantando sozinho com a orquestra. “S&M2” traz a banda no seu auge, cada vez mais destemida e audaciosa, sempre buscando um caminho novo. Vida longa ao Heavy Metal.

“Heavy metal e música clássica têm muito em comum. Essa parceria era questão de tempo”

UMA CATARSE COLETIVA
Pedro Gadelha, contrabaixista da Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp)

Divulgação

Estou ansioso para ouvir “S&M2”, novo projeto do Metallica com orquestra, porque participei do original, “S&M”, em 1999. Eu estava em Berlim quando surgiu o convite para tocar em um concerto especial da Berliner Symphoniker (Sinfônica de Berlim). Ao saber do que se tratava, corri para responder à mensagem na secretária eletrônica: dois ensaios e uma apresentação com a banda Metallica.

Nos ensaios, ainda sem a banda, o maestro e arranjador Michael Kamen contou um pouco sobre o projeto. Tudo começou com um encontro com os roqueiros no camarim do Grammy, onde ele recebeu alguns prêmios pela trilha de “Rei Leão”. Com sua atitude relaxada e divertidíssima – o que já contrastava com a disciplina sisuda da orquestra alemã –, Kamen explicou como seria a apresentação e nos preveniu a respeito do volume de som durante o concerto, algo que nenhum músico ali jamais havia experimentado.

Chegou o dia do concerto: passagem de som e o encontro com a banda. Uma produção impecável. O velódromo ainda estava vazio, mas uma multidão já se acotovelava do lado de fora, impaciente pela espera. No backstage, bati um papo com o baixista Jason Newsted, que havia entrado recentemente no Metallica. Ele foi muito simpático, elogiou bastante o naipe de contrabaixos da orquestra. Um violinista, que pela sua idade já devia estar próximo da aposentadoria, comentou que nunca havia ouvido ninguém com tanto ritmo como o baterista Lars Ulrich. Na entrada no palco, já deu para ver que o público não estava de brincadeira: parecia uma competição de quem urrava mais forte. A banda entrou depois de uma introdução da orquestra e foi uma catarse coletiva, um banho de energia que senti em cada célula do meu corpo. Uma excelente lembrança daqueles dias berlinenses – com exceção do apito no ouvido causado pelo alto volume, que ainda durou uma semana.

“Eu estava em Berlim quando surgiu o convite para tocar em um concerto com o Metallica”


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