REPRESSOR Bruno Gagliasso: papel de policial inspirado no delegado Sérgio Paranhos Fleury (Crédito:Divulgação)

Na noite de 4 de novembro de 1969, em uma partida decisiva pelo Campeonato Brasileiro, o Corinthians vencia o Santos de Pelé por 4 a 1 no estádio do Pacaembu. Com os olhos grudados na tela da TV, os moradores do bairro dos Jardins, em São Paulo, estranharam o ruído excessivo dos fogos de artifício na região. O plantão que interrompeu a transmissão dos telejornais logo trouxe a explicação: não eram rojões, mas o barulho dos tiros disparados pela polícia, numa emboscada na Alameda Casa Branca, que mataram Carlos Marighella, o inimigo número 1 da ditadura militar.

O filme mais explosivo do ano chega após uma longa espera: “Marighella” é uma bela produção cinematográfica, mas também um manifesto político. É assinado por Wagner Moura, que deixa por enquanto a função de ator para se dedicar à estreia atrás das câmeras. Quem interpreta o líder do movimento guerrilheiro clandestino denominado Ação Libertadora Nacional (ALN) é o cantor e compositor Seu Jorge, em atuação primorosa. O elenco traz ainda Adriana Esteves, Herson Capri e Bruno Gagliasso.

“Quis devolver ao imaginário popular brasileiro a figura desse importante personagem que foi deliberadamente apagado de nossa memória. A vontade de fazer o filme vem da profunda admiração que tenho por ele e por seu legado” Wagner Moura, diretor (Crédito:Divulgação)

Rodado em 2017, o filme foi exibido no Festival de Berlim em 2019 – a platéia o aplaudiu de pé durante dez minutos. Demorou para chegar ao Brasil por causa da pandemia, mas principalmente porque a Agência Nacional do Cinema (Ancine) dificultou a liberação da verba prevista para sua finalização. “Marighella” é uma crítica feroz ao regime militar, o que vai de encontro ao discurso do governo federal. Basta lembrar que o mais cruel torturador do período, o general Brilhante Ustra, é ídolo do presidente Jair Bolsonaro. Como era de se esperar, a polarização chegou às redes sociais. No IMDB, plataforma global que reúne comentários enviados por internautas, houve uma campanha tão virulenta contra o filme, antes mesmo da estréia, que o site decidiu rever seu sistema de votações online.

Independentemente da mensagem, “Marighella” é um grande filme de ação. A cena de abertura, que narra o assalto a um trem para roubo de armas, entrará para a história do cinema brasileiro como uma das mais intensas já rodadas por aqui. A experiência em produções internacionais trouxe confiança e bagagem técnica para Wagner Moura, que não teve receio de iniciar a carreira na direção à frente de um thriller com 2h40 de duração. Como ator, ele brilhou no papel do traficante Pablo Escobar em “Narcos”, filmado na Colômbia; em Hollywood, foi protagonista de “Sergio”, cinebiografia inspirada na vida do diplomata Sérgio Vieira de Mello. Apesar de morar com a família na meca do cinema, em Los Angeles, nos EUA, Moura sente saudade da Bahia, local onde começou a carreira no teatro ao lado de Lázaro Ramos e Wladirmir Britcha. Em 2022 voltará ao País para filmar com dois diretores brasileiros que também gozam de prestígio internacional, Kleber Mendonça e Karim Aïnouz.

SUCESSO O elenco no Festival de Berlim: platéia aplaudiu de pé durante dez minutos (Crédito:Ali Ghandtschi)

Moura admite que o filme tem uma mensagem política. “Quis devolver ao imaginário popular brasileiro a figura desse importante personagem que foi deliberadamente apagado de nossa memória”, afirma ele. O diretor concebe Marighella como herói? “Sou contra qualquer interpretação que simplifique as coisas. Meu trabalho como artista é dar complexidade aos personagens. Mas, sem dúvida, a vontade de fazer o filme vem da profunda admiração que tenho por ele e por seu legado.” Moura está coberto de razão em ser radicalmente contra a ditadura militar. A sua visão da luta armada, que a ela se opôs, é, porém, ingênua: Marighella não lutava pela democracia, mas, sim, pela instauração no País de uma ditadura comunista nos moldes de Cuba. Nenhum regime extremista, de direita ou de esquerda, presta. Inspirado na biografia de Mário Magalhães, o filme não exibe ações de generais estrelados, limitando-se à atuação de repressores nos “porões” do regime de exceção – um dos mais nefastos períodos da história do Brasil.