FORÇA MARÍTIMA A Rússia já possui mais de 40 navios quebra-gelo: dois deles com duplo motor nuclear (Crédito:Divulgação)

Se mudanças climáticas ameaçam o planeta, o degelo no Polo Norte acelera possibilidades políticas e econômicas que se revelam em meio às águas aquecidas do Oceano Ártico: navios mercantes encurtam tempo e espaço entre Ásia e Europa, minérios preciosos e raros atiçam a cobiça de governos e megaempresários. A guerra congelada derrete com o rápido aquecimento daquela região, três vezes maior que em qualquer outra do globo. E, com a invasão da Ucrânia, essa fronteira desprotegida de leis ambientais ainda se abre para manobras militares mais acirradas. O Ártico se tornou um novo ambiente de disputa geopolítica.

Nessa corrida, tudo é permitido: exploração de riquezas naturais como gás, petróleo, urânio e cobre; rotas com navios cargueiros e quebra-gelo, e usinas nucleares. Além disso, há bases militares e são frequentes os exercícios com tropas lançando mísseis hipersônicos. Ao contrário da Antártica, que tem um tratado desde 1959 permitindo a ocupação de seu território somente por cientistas, o Ártico não é de ninguém e todo mundo é dono de alguma coisa ou quer um pedaço, na explicação do comandante Leonardo Mattos, professor de Política e Estratégia da Escola de Guerra Naval.


USINAS FLUTUANTES Produção de energia nuclear: cidades e indústrias abastecidas (Crédito:ALEXANDER NEMENOV)

A Antártica é um continente cercado por oceano, enquanto o Ártico é um oceano cercado por terras. Ali, a maior extensão litorânea é da Rússia por onde passa a Rota Nordeste do Mar (NSR, na sigla em inglês), a principal da região. A segunda maior costa é do Canadá, com a chamada Passagem Noroeste, em desvantagem pela área emaranhada de ilhas. E as disputas se acirram quanto à extensão das plataformas continentais de cada país, em busca da mineração desenfreada. A NSR possui mar descongelado no alto verão, o que permite a passagem de navios. Com o aquecimento global, esse período de tempo se estende a cada ano, assim como se alarga a área de passagem. Esse caminho pela “tampa achatada” do planeta interessa especialmente à China, ao Japão e à Coreia do Sul, porque cargueiros economizam cinco mil quilômetros e dez dias nas viagens à Europa, em comparação à rota pelo Índico e Mar Vermelho, pela África.

São oito países que fazem parte do Conselho do Ártico, criado em 1996: Rússia, Finlândia, Suécia, Noruega, Islândia, Dinamarca (Groenlândia), Canadá e EUA. Mas a importância estratégica da região pode ser medida na quantidade de Estados-observadores que também estão por lá (China, França, Reino Unido, Alemanha, Polônia, Espanha, Holanda, Itália, Suíça, Índia, Singapura, Japão e Coreia do Sul), além das seis organizações indígenas e dos 25 organismos multilaterais.

Com a corrida ao Ártico acelerada, a Rússia investe bilhões de euros em fontes energéticas e minerais. E movimenta 40 navios quebra-gelo, como único país em condições de ajudar em resgates das embarcações mercantis que encalhem. Uma nova geração desses navios, com dois motores nucleares e que passam no gelo com até três metros de espessura, já está no mar, com o “Arktik” lançado em 2021, e o “Sibir”, no início desse ano. Mais três estão sendo construídos (os EUA têm apenas um quebra-gelo, operacional, de 1973). Murmansk, cidade com 300 mil habitantes, é sede da Atomflot (braço da Rosatom, estatal russa de energia atômica), que também constrói e opera usinas nucleares flutuantes para prover de energia cidades distantes e indústrias.

E se antes os russos não precisavam se preocupar militarmente com suas “costas” ao norte, protegidas pelo paredão de gelo quase permanente do Ártico, o aquecimento das águas tornou essa área mais vulnerável. Exercícios militares foram intensificados antes da invasão da Ucrânia, com aviões de ataque e sistemas de mísseis e radares mais avançados. Em setembro passado, oito mil soldados, com 120 aeronaves e 50 navios de guerra participavam de manobras. Lá fica a principal esquadra do país, chamada “Norte”.

Devido ao rápido aquecimento no extremo norte do planeta, a União Europeia se viu forçada a apresentar uma nova estratégia para o Ártico, em outubro passado, divulgando que “o interesse intensificado pelos recursos e rotas de transporte pode transformar a região em arena geopolítica e de competição local, com possíveis tensões e ameaças aos interesses da UE”. A OTAN (aliança militar ocidental), que promove exercícios militares bianuais “em extremas condições atmosféricas adversas, de temperatura, neve e gelo”, segue na Noruega até a próxima semana com a operação Cold Response (Resposta Fria), desta vez reforçada. São 40 mil soldados das forças terrestre, aérea e naval aliadas (dentre eles, 3 mil fuzileiros navais americanos), com 200 aeronaves e 50 navios, na maior operação dentro do Círculo Polar Ártico desde 1980.