Com a emergência da Covid-19, a agenda de reformas de Paulo Guedes não foi apenas adiada. Terminou atropelada pela Câmara, que acaba de aprovar um projeto bilionário de ajuda aos estados e municípios. Somando R$ 89,6 bilhões, o auxílio cria um seguro-receita que compensa a queda na arrecadação de ICMS e ISS (mantém os níveis de 2019) e suspende o pagamento dos empréstimos com o BNDES e a Caixa Econômica Federal de março a dezembro deste ano. O problema é que abre brechas para concessão de subsídios e a isenção de impostos — tudo o que a equipe econômica procurava disciplinar. A culpa, como sempre, é da falta de articulação do governo Bolsonaro.

O projeto emergencial foi bancado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. É uma adaptação do Plano Mansuetto, que previa uma ajuda aos Estados endividados em troca de privatizações e limitação nos gastos, inclusive com o funcionalismo. Com a crise e a perspectiva de queda de até 35% na arrecadação, tudo se precipitou. E quase abriu a chance para mais uma irresponsabilidade fiscal. Além da compensação pela perda de receitas, o substitutivo incluía a possibilidade de Estados contraírem novas dívidas, avalizadas pela União. Também favorecia o Rio de Janeiro, que está em recuperação judicial. O secretário do Tesouro Nacional, Mansueto de Almeida, previu que o impacto nas contas públicas chegaria até R$ 222 bilhões. Esses itens foram eliminados no texto aprovado na segunda-feira, 13. Ainda assim, o ministro da Economia criticou, chamando-o de “pauta bomba”.

O governo anunciou um projeto alternativo no dia seguinte, cortando a compensação pela perdas pela metade — de R$ 80 bilhões para R$ 40 bilhões.

A proposta governista, que soma R$ 77,4 bilhões, inclui a suspensão das dívidas com a União e bancos oficiais. Foi a vez de Maia revidar. Para ele, essa solução não resolverá o problema dos estados e “não sobrevive três meses”.

ATRITO Paulo Guedes reclama da “pauta bomba”, e Rodrigo Maia diz que proposta do governo “não dá para três meses” (Crédito:Pedro Ladeira)

Guedes, que tem reagido lentamente à crise, criticou o projeto aprovado: “Seria uma irresponsabilidade fiscal e um incentivo perverso. Um cheque em branco para governadores de estados mais ricos”. Os R$ 80 bilhões aprovados se referem a uma previsão de queda de 30% na arrecadação. O ministro diz que se a arrecadação cair 50%, a conta da ajuda direta chegará a R$ 142,5 bilhões. O governo ficou isolado na votação, que teve a aprovação de todos os grandes partidos. Aposta agora todas as fichas no Senado para reverter o projeto. Para isso, Jair Bolsonaro tentou aproveitar a disputa entre as duas Casas pelo protagonismo nas ações contra a pandemia. Reuniu-se com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que se prontificou a colaborar. A Mesa Diretora do Senado já decidiu anexar o projeto a outro do senador Antonio Anastasia, que estava parado na Casa. Mesmo que convença os senadores, é pouco provável que o governo tenha sucesso em convencer a Câmara a apoiar sua proposta. A aprovação foi por ampla maioria — 431 a 70.

“Você entra por uma porta e, quando sai, leva um coice. Essa é a relação que o governo tem com os políticos”
Rodrigo Maia, presidente da Câmara

Maia ataca Bolsonaro

Essa queda de braço expôs mais uma vez a fragilidade do governo. Rodrigo Maia é um alvo frequente das milícias digitais bolsonaristas e está desgastado com Guedes desde a votação do Orçamento Participativo. O presidente da Câmara acusa Bolsonaro de tentar “dividir a federação”. Isso porque o governo editou no último dia 2 uma Medida Provisória recompondo os fundos de participação de estados e municípios que beneficia o Nordeste, uma região em que Bolsonaro é impopular. Já o projeto da Câmara privilegiou os estados do Sul e Sudeste, pois segue o critério da arrecadação — favorece estados como São Paulo e Rio de Janeiro, governados por João Doria e Wilson Witzel, os maiores adversários de Bolsonaro. Uma alternativa para destravar as negociações seria usar o critério de número de habitantes, como agora quer o governo, mas com números mais modestos. O economista Marcos Mendes defende que essa regra não prejudica os estados do Sudeste. “Beneficia os estados e municípios mais populosos.

Isso faz sentido. É nesses locais que a pandemia está fazendo mais estrago.

O primeiro pacote de ajuda do governo (a MP) se fez pela via de recursos que beneficiaram mais o norte e o nordeste. Agora é hora de olhar o sul e sudeste”.

Para driblar as dificuldades com o Congresso, Bolsonaro tem recebido líderes do Centrão. Maia desdenha da iniciativa e critica as negociações. “O problema é que você entra por uma porta e, quando sai, leva um coice. Essa é a relação que o governo tem tido com os políticos do Congresso desde que assumiu o poder”, afirmou. A disputa também envolve a paternidade da ajuda. Bolsonaro quer associar sua própria imagem aos auxílios emergenciais, como aconteceu com o “coronavoucher” de R$ 600. Ao segurar a verba, vê ainda a oportunidade de “emparedar” os governadores rivais. Mas ,com isso, entra em choque com o Congresso novamente e contribui para fragilizar as reformas. Medidas como a limitação do salário do funcionalismo ficaram de fora, mais uma vez — nas duas propostas, com a benção do próprio Bolsonaro e do Congresso.