A nova versão de Grande Sertão: Veredas não é a primeira adaptação de Guimarães Rosa para o cinema — nem sequer a estreia de sua obra-prima nas telas. A tentativa número um de transpor o universo lúdico do autor mineiro para o audiovisual aconteceu em 1965, com o filme dos irmãos Renato e Geraldo Santos Pereira, lançado nove anos após a publicação do livro. De lá para cá, houve inúmeras tentativas de traduzir sua linguagem única para imagens, algumas com sucesso, outras nem tanto.

A segunda adaptação da história do amor proibido entre Riobaldo e Diadorim, trama central da obra, foi parar na TV Globo em 1985, quando Walter Avancini levou ao público uma minissérie estrelada por Tony Ramos e Bruna Lombardi.

A versão que chega agora aos cinemas tem direção de Guel Arraes (O Auto da Compadecida, Lisbela e o Prisioneiro) e traz no competente elenco os atores Caio Blat (Riobaldo), Luisa Arraes (Diadorim), Rodrigo Lombardi (Joca Ramiro) e Eduardo Sterblitch (Hermógenes).

‘Grande Sertão’, de Guimarães Rosa, chega ao cinema com jagunços urbanos
Guimarães Rosa: ao incorporar o modo de falar regional às suas obras, ele ampliou os limites do idioma (Crédito:Divulgação )

Experiente e talentoso, Guel Arraes arriscou-se ao trazer o universo da violência dos jagunços do sertão para o território das organizações criminosas da periferia urbana. Mas o resultado alcançado é um filme de ação reflexivo e bastante interessante. A combinação do visual contemporâneo com a linguagem rebuscada não é exatamente algo novo, mas é certamente de difícil execução.

Há algum tempo isso vem sendo feito nas adaptações de William Shakespeare em Hollywood. O australiano Baz Luhrmann seguiu essa cartilha em 1997, quando transformou Romeu e Julieta numa história de amor em meio a uma guerra de gangues urbanas. O diretor Michael Almereyda fez algo semelhante em 2000, na releitura de Hamlet. O príncipe da Dinamarca, interpretado por Ethan Hawke, é retratado como o herdeiro de uma grande corporação em Nova York.

Guerra atual

Por mais difícil que seja, a linguagem não é o único obstáculo na hora de adaptar Guimarães Rosa para o cinema. Foi preciso reduzir as centenas de páginas do livro a um roteiro sucinto, que coubesse na duração do filme, pouco menos de duras horas. Para Guel Arraes, a transposição para os dias de hoje foi feita de forma natural porque havia a ideia de se manter o caráter atemporal do livro, que aborda temas como a paixão e a guerra.

“Procuramos trazer o espectador para dentro da história privilegiando as trilhas de amor e aventura que formam uma parte importante da obra. Mas mantivemos a linguagem poética, a prosódia do livro que é um de seus encantos principais”, explica.

O diretor afirma que procurou manter o tom épico e poético da obra original, para que a guerra urbana das grandes cidades brasileiras, nos dias de hoje, tivesse o mesmo tom universal que a matança entre jagunços do interior de Minas teve no século passado.

“Tentamos mostrar que os confrontos no Brasil são da mesma matéria que as guerras que a humanidade trava em todo o mundo e em todas as épocas, uma vez que suas questões políticas e morais são as mesmas desde tempos imemoriais. A luta pelo poder político revela os conflitos universais entre lealdade e traição, coragem e covardia, justiça e vingança. E na luta entre o bem e o mal há polícias e bandidos dos dois lados da questão”, diz o diretor.

A recompensa ao seu trabalho começou a aparecer: Arraes venceu o prêmio de melhor diretor do Tallinn Black Nights Festival, na Estônia, na escolha dos críticos.

Jorge Furtado, que assina o roteiro com Guel Arraes, revela que a inspiração para o universo violento do filme vem da realidade do Rio de Janeiro. “É uma história de guerra, de batalhas entre diferentes grupos armados e a polícia. Infelizmente, nada mais atual. Mantivemos, sempre que possível, palavras do livro para compor as falas dos guerreiros. E pescamos alguns comentários do Crime News, um blog de notícias da guerra entre facções que acontece no Rio de Janeiro.” Como diria Riobaldo: “Um dia ainda entra em desuso matar gente”.

Guimarães Rosa: dos livros para as telas

Ciúme e vingança

‘Grande Sertão’, de Guimarães Rosa, chega ao cinema com jagunços urbanos
(Divulgação)

A Hora e a Vez de Augusto Matraga, um dos contos mais populares de Sagarana, foi adaptado para o cinema em 1965, por Roberto Santos, e em 2015, por Vinicius Coimbra

Retratos da vida

‘Grande Sertão’, de Guimarães Rosa, chega ao cinema com jagunços urbanos
(Divulgação)

O longa Outras Estórias, dirigido por Pedro Bial em 1999, tem roteiro inspirado em diversos contos e seu enredo se passa numa pequena cidade no interior de Minas Gerais

Realismo fantástico

‘Grande Sertão’, de Guimarães Rosa, chega ao cinema com jagunços urbanos
(Divulgação)

Um homem abandona a família para viver numa canoa, no meio de um rio, e nunca mais volta à terra firme. A Terceira Margem do Rio (1994) tem direção de Nelson Pereira dos Santos